Um disparo no tórax matou Lucas. Emerson caiu de uma ribanceira, após ser atingido por um tiro na perna. Jhonny foi alvejado na nuca. William levou um tiro no peito. Jovens, negros, filhos da periferia. Todos mortos só este ano por tiros disparados pela Polícia Militar de Pernambuco, durante abordagem policial. Emerson e Lucas assassinados no mesmo mês (outubro), com um intervalo de apenas nove dias entre eles. Nenhum dos garotos tinha passagem pela polícia. O que acontece depois do tiro? Há um padrão nos capítulos seguintes a essas mortes. Versões conflitantes, acusações contra as vítimas, revolta e protesto da comunidade. Às famílias, restam a dor, o vazio e uma luta por justiça que se arrasta por anos. Não raro, o medo de represália e a incerteza da punição jogam o crime no esquecimento. A letalidade da polícia em abordagens nas comunidades ganhou este ano quatro novos rostos. Mas a ferida é antiga, estrutural e está longe de ser enfrentada por um aparelho de segurança que criminaliza a pobreza e espelha o racismo da sociedade.
Os números não deixam dúvidas. A despeito da pandemia e do isolamento social imposto pelo novo coronavírus, as mortes decorrentes de intervenção policial em Pernambuco, de janeiro a setembro deste ano, já superam todo o ano de 2019. No ano passado, foram contabilizadas 74 mortes. Este ano, o número já chega a 87 casos. O mais recente, o de Lucas Luz da Rocha, um estudante de 17 anos, seguiu o roteiro de sempre. Na noite do dia 17 do mês passado, o rapaz estava, segundo a família, conversando com amigos, nas escadarias do Alto da Colina, em Cavaleiro, Jaboatão dos Guararapes, quando uma ação da PM terminou com o garoto morto por um tiro no tórax.
Tudo o que envolveu a abordagem e a consequente morte do jovem é conflitante. Enquanto a polícia diz que o adolescente trocou tiros com os PMs, vizinhos e parentes do estudante afirmam que ele nunca esteve envolvido com o crime, tampouco portava arma e drogas. À família, a polícia não admitiu sequer que ele tinha sido atingido por um disparo de arma de fogo. Disse que o jovem tinha corrido, caído e batido a cabeça na fuga. Coube à equipe médica da unidade onde o rapaz foi atendido contar que ele tinha uma perfuração no tórax. "Eles não deram nem chance de meu filho se defender. Lucas ainda foi espancado, arrastado pelas escadarias, estava com cortes e arranhões", diz a mãe, Edilma Maria da Luz, 37. "Os policiais mentiram o tempo todo. Quantas vidas a mais eles vão tirar? Quantas famílias ainda vão chorar?", questiona, inconformada, a estudante universitária Renata Gonçalves, 21, irmã de Lucas.
LIMPAR O NOME
Não é só a perda que revolta. A narrativa que impera nas abordagens policiais na periferia representa uma segunda morte para as famílias. "Disseram que meu filho estava com um simulacro de arma, que tentou reagir. Como? Se ele morreu de costas, com um tiro certeiro na nuca? Eles matam, alegam o que querem e a gente é que tem que correr para limpar o nome do nosso filho", desabafa o soldador Cleiciano Ferreira, 41. Ele é pai de Jhonny Lucindo Ferreira, um jovem de 17 anos que já mostrava habilidade no ofício do pai. Os dois tinham um plano. Assim que o rapaz completasse 18 anos, iam abrir uma empresa para prestar serviços de soldagem. O garoto estava trabalhando na oficina do pai, a mesma fundada pelo avô, quando saiu para buscar uma chave de fenda na casa da tia, em Prazeres, Jaboatão dos Guararapes. Era início de tarde do dia 5 de agosto deste ano. Jhonny nunca voltou com a ferramenta.
O adolescente pegou uma carona na moto de um amigo. No caminho foram abordados por uma viatura da PM. Minutos depois, Jhonny estava caído no chão. Os policiais alegaram que os dois rapazes estavam em "atitude suspeita". "O que eles estavam fazendo de errado? Nada. Eram dois jovens negros numa moto. Isso é uma atitude suspeita?", pergunta o pai de Jhonny. A família diz que o simulacro de arma, alegado pela PM, só veio aparecer na delegacia. Dias após o crime, parentes, amigos e moradores de Prazeres foram até o Palácio do Campo das Princesas cobrar a prisão e o afastamento dos dois policiais envolvidos na abordagem. "Soubemos depois que eles foram afastados, mas não em função da morte de Jhonny. O policial que atirou pediu aposentadoria e o outro alegou razões médicas. E nenhum deles está preso", afirma a advogada Isabela Lima, que representa os pais do adolescente.
CRESCIMENTO
O recrudescimento da letalidade policial é uma tendência nacional, observa Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, responsável pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública. "Nessa pandemia, houve uma redução significativa dos crimes contra o patrimônio, o que poderia induzir a uma queda nas mortes provocadas pelas abordagens policiais. Mas não foi isso o que aconteceu. Pelo contrário, as estatísticas mostram um crescimento", observa.
Samira chama atenção para um ponto que, em sua avaliação, não só faz parte do problema como dificulta a busca por soluções. "Em geral, a PM trata essas mortes decorrentes da ação policial como casos isolados, como um desvio de conduta individual. Essa visão impede de olhar o fenômeno como de fato ele é: o resultado de um conjunto de fatores que envolve abuso de força, protocolos de abordagem ultrapassados, racismo estrutural e um discurso político violento que, cada vez mais, impacta na ação policial", enumera a especialista.
Coordenador da Rede de Observatórios de Segurança e doutor em ciência política, Pablo Nunes vê com perplexidade a repetição de casos de jovens mortos em abordagens policiais e alerta para o risco de normalização dessas ocorrências. "Temos que deixar claro que não só as famílias das vítimas, mas, nós, da sociedade civil, não podemos tolerar essa conduta. Não podemos aceitar que essas ações violentas sempre estejam relacionadas à raça e ao CEP das vítimas", afirma. Apesar de ser a ponta do sistema e de onde vem o tiro, Pablo ressalta que a polícia, não pode ser a única responsabilizada por essas mortes. "É muito importante discutir quem dá respaldo e fomenta essa ação policial. O Ministério Público, ao não fazer o controle externo da polícia, e a Justiça, ao retardar o julgamento dos autores, também fazem parte desse mecanismo perverso que pune, sobretudo, pretos e pobres."
Francisco da Silva e Lúcia da Conceição conhecem bem como o sistema funciona. Eles viram o filho, Marcos Laurindo, 21, portador de transtornos mentais, ser assassinado por um policial militar dentro de casa. "Ele caiu nos meus pés. Eu pedi por tudo para ele não atirar no meu filho. Mas ele deu um tiro certeiro no coração", relembra a mãe. Na delegacia, os policiais alegaram que o jovem havia tentado assaltar a viatura. O crime, ocorrido no dia 17 de maio de 2013, caminha para completar oito anos sem que os policiais tenham sido julgados. Em junho deste ano, os acusados foram pronunciados por homicídio qualificado e fraude processual, mas ainda não há data prevista para o julgamento. Uma espera que, para seu Francisco, só findará com a condenação dos réus. "Eu vou até o fim da minha vida lutando para vê-los atrás das grades", diz o pedreiro, mostrando a única foto que restou do filho: a da carteira de identidade.
QUASE UM ANO DE SOFRIMENTO
Este mês, o sofrimento da pescadora Maria José Pereira, 56 anos, completa um ano. No dia 10 de novembro de 2019, o corpo de Guilherme Pereira Alcoforado, 26, filho de Zeza, como a pescadora é conhecida, apareceu boiando no mangue da Praia de Barra de Catuama, em Goiana, no Litoral Norte do Estado. Fazia horas que o jovem estava desaparecido. Sumiu depois de uma abordagem policial, realizada na tarde do domingo, quando veranistas e moradores estavam na praia. Os policiais foram à procura de um homem acusado de praticar crimes em Itapissuma. Na ação, várias pessoas correram. Guilherme entre elas. O rapaz foi encontrado, à noite, com um tiro na nuca. No inquérito, uma das testemunhas afirma que viu os policiais atirando no mangue e o momento em que "Guilherme botou uma das mãos na nuca e caiu no mangue".
Nascida e criada em Barra de Catuama, onde criou os três filhos, Zeza não teve mais um dia de paz, desde então. "Eu paralisei quando o corpo dele foi encontrado. O que tomou conta de mim foi o ódio. Eles mataram um homem inocente. Meu filho pescava, era marinheiro, menino de família, todos conhecem ele e meus outros filhos. O perito, quando veio, disse que foi uma execução. Um tiro de pistola", afirma, revoltada. Passado quase um ano, o inquérito ainda não foi concluído. Quatro policiais que participaram da operação foram chamados para depor, mas decidiram ficar em silêncio.
A família aguarda o resultado de laudos periciais para o desfecho da investigação. "Eles vão verificar se o calibre das armas dos PMs é compatível com a bala tirada do corpo do meu filho. Eu vou esperar o resultado, mas já soubemos que uma das policiais femininas que estavam no local não foi ouvida. Vamos pedir que todos sejam chamados. A morte do meu filho terá que ser explicada pelo Estado. Não vou descansar enquanto o assassino não for punido. Meu filho não era bandido. Era um trabalhador", declara a pescadora.
A expectativa da mãe pelo resultado do exame de balística nas armas recolhidas dos policiais evidencia a importância da produção de provas técnicas para esclarecer mortes que sempre envolvem versões tão contraditórias. Para a coordenadora do Grupo de Apoio Jurídico às Organizações Populares (Gajop), a socióloga Edna Jatobá, o investimento no trabalho pericial é um dos pontos que deveriam ser priorizados pelo Estado.
"Principalmente quando envolve possíveis arbitrariedades cometidas por agentes de segurança. Há sempre uma guerra de narrativas e uma perícia eficiente e independente vai produzir provas técnicas capazes de equilibrar o peso dessas narrativas na hora do júri. Sem isso, ficará sempre a palavra do policial contra a das vítimas, o que, muitas vezes, contribui para a impunidade", avalia Edna Jatobá.
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