Violência

Pandemia amplia silêncio sobre crimes sexuais contra crianças e adolescentes

Número de registros de estupro de crianças e adolescentes caiu, apesar de vítimas estarem mais expostas durante a quarentena do novo coronavírus. Confinados em casa, crianças e adolescentes podiam estar convivendo com o agressor, mas sem chances de denunciá-lo.

Ciara Carvalho
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Ciara Carvalho
Publicado em 29/11/2020 às 8:56
FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM
A criança em questão foi vítima do estupro no começo do ano e, quando descobriu a gestação, estava com 22 semanas - FOTO: FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM
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O silêncio que impera nos crimes sexuais contra crianças e adolescentes ecoou ainda mais forte na pandemia. O distanciamento social, imposto pelo novo coronavírus, afastou meninos e meninas da escola, de amigos e de familiares - uma rede de apoio e de proteção essencial para ajudar na denúncia dos abusos sofridos. Apesar do risco maior a que estão expostas, já que a maioria dos casos de violências sexual se dá no ambiente doméstico, as vítimas tiveram o acesso à delegacia restrito na quarentena. Resultado: o número de registros de estupro de menores de idade caiu, sobretudo nos três primeiros meses da pandemia. Confinados em casa, crianças e adolescentes podiam estar convivendo com o agressor, mas sem chances de denunciá-lo.

As estatísticas da Secretaria de Defesa Social (SDS) mostram que em março, abril e maio deste ano a redução ficou em torno de 30%, comparada com o mesmo período do ano passado. Especialistas e profissionais que trabalham na área são categóricos ao afirmar que essa queda no número dos registros esconde, na verdade, uma subnotificação dos casos, em decorrência da dificuldade ou da impossibilidade de a vítima fazer a denúncia.

Uma prova desse cenário é que, a partir de agosto, quando houve uma maior reabertura das atividades e um aumento da circulação das pessoas, os registros voltaram a crescer, chegando a ficar muito próximos dos números de 2019. A exceção foi o mês passado, que apresentou uma nova redução, de 31%.

"Havia uma demanda reprimida, que está voltando. A gente acredita que pode ter havido até um aumento dos casos na pandemia, já que as vítimas estavam mais vulneráveis. Mas o confinamento terminou contribuindo para essa redução nos registros oficiais. Não só em relação ao crime sexual. Observamos uma queda no número de denúncias de violência de qualquer natureza", afirma o delegado Geraldo da Costa, da Delegacia Especializada de Crimes Contra Criança e Adolescente da Capital (Deca).

"A redução é muito sintomática do confinamento. Havia um impedimento real para vítimas e familiares registrarem a ocorrência. Assim como a violência doméstica, o agressor está dentro de casa ou é alguém próximo da família. Então, as chances de interromper esse ciclo, no meio de uma pandemia, são muito menores", diz a advogada criminalista Fernanda Lima, que atua em casos de violência de gênero e de crianças e jovens vítimas de abusos sexuais.

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Ela observa que a pandemia fortaleceu a cultura do silenciamento, de forma ainda mais contundente do que nas situações de violência doméstica contra a mulher. "No caso da violência de gênero, ainda existiram campanhas oficiais, estimulando a denúncia. Mas, em relação aos crimes sexuais contra crianças e adolescentes, não houve um auxílio direto, um recado dirigido às vítimas e aos familiares para estimular o registro do crime", avalia. Fernanda Lima diz que essa postura de invisibilidade é reforçada pelo tabu social que ainda envolve a discussão em torno de crimes sexuais contra menores de idade. "Ainda são vistos pela sociedade como um fato que deve ficar restrito ao ambiente de casa, para não expor a família", pontua.

Para a pesquisadora associada do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) Sofia Reinech, apesar de ser um problema endêmico, os crimes sexuais contra crianças e adolescentes não são tratados com a urgência que o tema exige. "Ele está entre nós, mas ninguém fala sobre ele. Como se fosse um assunto proibido. Existe uma questão moral de como a sociedade se organiza e essa cultura contribui para a subnotificação", observa a pesquisadora. Um reflexo da falta de prioridade no debate é a ausência de um diagnóstico preciso sobre o número de casos e o perfil de vítimas e agressores.

Para se ter uma ideia, no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, feito pelo FBSP, só 17 dos 27 Estados brasileiros enviaram os dados de crimes sexuais registrados em 2019. E mesmo assim, muitos deles sem informar dados cruciais, como idade das vítimas, local onde o abuso ocorreu e a relação de proximidade do agressor. Justamente os três indicadores mais importantes para análise desse tipo de crime. Pernambuco. inclusive, foi um dos Estados que não disponibilizou os dados solicitados em relação às estatísticas do ano passado.

CUIDADO NA HORA DA ESCUTA

Não se pergunta para uma criança ou adolescente vítima de violência sexual o porquê dele não ter denunciado antes o crime. O questionamento deve seguir outro caminho. O mais adequado é tentar saber o que aconteceu para que ele/ela tenha se sentido encorajado e seguro para conseguir fazer a denúncia. A orientação na hora da abordagem tem um propósito muito claro: não revitimizar quem já passou por uma situação de violência. Essa é a principal preocupação da escuta especializada, um atendimento feito na delegacia por profissionais capacitados para acolher os menores que denunciam o abuso sofrido.

A pedagoga e agente de polícia Auridete Gouveia, que há dez anos atua fazendo esse atendimento, diz que o objetivo da escuta é obter o mínimo de informação para caracterizar o crime, mas com todo o cuidado para não expor a criança ou adolescente. "Geralmente, concentramos em responder três perguntas básicas: o que aconteceu? como? e quem é o autor da violência? Essas respostas são necessárias para embasar a abertura do inquérito policial. As informações mais detalhadas deverão ser prestadas na Justiça, com o seguimento do processo", explica.

No Judiciário também há um serviço especializado para o atendimento de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de crime sexual. Chama-se, nesse caso, depoimento acolhedor. Para dar mais segurança e proteção, a vítima é ouvida apenas por um profissional especializado. Já os demais participantes do processo (juiz, promotor, defensor público e advogado) ficam em outro ambiente e acompanham o depoimento de forma virtual. Tudo para que a criança ou o jovem sinta-se seguro na hora de relatar o abuso.

Auridete Gouveia diz que essa abordagem especializada é fundamental para ajudar a vítima a se sentir confiante para expor a situação. "São várias as razões que impedem ou dificultam uma criança ou adolescente de falar sobre a violência sofrida. Medo, vergonha, falta de credibilidade no relato feito e até o peso da responsabilidade, diante das consequências que aquela denúncia poderá ter para a família. Tudo isso faz com que muitas vítimas passem anos em silêncio e só tenham coragem de falar na fase adulta", observa.


Ela ressalta a importância de levar a discussão dessas questões para dentro da escola, como forma de encorajar, sobretudo os adolescentes, a falar o sobre o tema. "A partir do debate, eles se sentem mais confiantes de expor o problema, seja para professores ou amigos", explica Auridete.
Um dado é sintomático. A agente policial conta que, nos últimos anos, tem observado que, na semana em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, o número de denúncias que chegam à delegacia costuma ter um acréscimo. "O ambiente de discussão que a data propicia dentro da escola ajuda nesse processo. A pessoa se sente encorajada a contar sobre a violência sofrida ou encontra apoio para fazer a denúncia." Nos dois casos, acontece o mais importante: o silêncio é quebrado.

 

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Caso da menina de 11 anos que teve aborto legal negado ganhou repercussão nacional nessa segunda (20) - FOTO:ILUSTRATIVA/FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM
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