Como é possível pensar em soluções para um problema que, em dados oficiais, não existe? Seja na posição de passageira de ônibus, metrô ou aplicativo, ciclista, motorista, motociclista ou de pedestre, todas elas têm uma história para contar, ainda que de um olhar ou uma ‘cantada’ que constrangem, até casos mais sérios de importunação sexual ou estupro. No entanto, na Região Metropolitana do Recife, não há, na prática, um monitoramento ou um sistema efetivos que permitam às vítimas reportarem tais situações para que, assim, gestões possam traçar as ocorrências, identificar as principais causas e propor a criação de políticas públicas que coloquem a mobilidade das mulheres como uma das prioridades mais urgentes no planejamento das cidades, a fim de garantir o direito de ir e vir presente na Constituição Federal.
Entre janeiro e dezembro de 2020, o Grande Recife Consórcio de Transporte recebeu apenas uma reclamação de importunação sexual dentro dos ônibus. O Metrô do Recife, duas. Os aplicativos de transporte individual mais populares na capital pernambucana contatados pela reportagem — Uber e 99Pop — não divulgaram seus números. Já o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) informou que não há um filtro de pesquisa que identifique os processos de casos praticados em transportes públicos, apenas sendo possível delimitar os de violência doméstica e feminicídio.
É fácil perceber que essas estatísticas não correspondem à realidade, e que a falta delas esconde uma imensidão de casos de violência contra a mulher que acontecem em público e diariamente durante seus deslocamentos pela cidade. Em 2018, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelou que a cada quatro segundos acontece um assédio no transporte público brasileiro. Já o Instituto Patrícia Galvão e Locomotiva constatou, em 2019, que 97% das mulheres já sofreram algum tipo de assédio na mobilidade urbana do país. Apesar de “assédio” ser comumente utilizado, a legislação traz que o termo correto para a violência praticada “contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro” é “importunação sexual” — crime desde 2018, incluso na lei de crimes contra a dignidade sexual.
Doutora em Transportes pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e pesquisadora da questão de gênero nos transportes, Jéssica Lima explica que a recorrência desses crimes é limitadora para o deslocamento das mulheres na cidade e que o medo da importunação sexual e do estupro é entendido como uma das razões mais importantes pelas quais elas escolhem não utilizar o transporte público, sendo ainda pior para as negras e de baixa renda, que têm menos possibilidades de escolha do meio de locomoção que vão utilizar.
“O assédio sexual influencia fortemente o medo do crime nas mulheres, por causa da invasão do seu espaço pessoal; não é só temer perder o celular ou a carteira. Por isso, muitas mulheres têm medo dos espaços e do transporte público, e vão restringindo o uso deles. Vale ressaltar que o transporte público é propício ao assédio sexual porque é um local onde as pessoas estão enclausuradas por um certo período de tempo e, em geral, em [situação de] lotação, onde os corpos precisam ficar juntos uns dos outros, tornando o corpo da mulher mais vulnerável. O medo faz com que as mulheres modifiquem seu comportamento; isso inclui sair do transporte público para pegar um próximo ônibus, atrasando a vida delas, porque se sentem inseguras”, explica.
Um estudo realizado no metrô do Recife pela pesquisadora em 2017 revelou tal tendência. Durante levantamento com passageiros, notou-se que, entre as mulheres, 79% consideravam a lotação do metrô como péssima; enquanto apenas 33% dos homens consideravam a lotação como péssima. Outra estatística interessante é que 30% dos homens e 37% das mulheres responderam que não usavam o metrô à noite, mas, quando perguntados por qual motivo, 75% dos homens responderam que nunca precisaram, enquanto 67% das mulheres responderam que não usam por medo.
Além da limitação na mobilidade urbana das mulheres, as empresas de transporte público também perdem economicamente, já que o problema tende à evasão no sistema. Segundo o anuário 2019-2020 da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), o segmento vem, há duas décadas, perdendo demanda estimada em quase 50%. Isso seria decorrente, segundo a análise, principalmente de problemas estruturais vivenciados pelo setor, como o modelo de custeio de tarifa paga quase que unicamente pelos passageiros, e as políticas de priorização dos modos individuais de locomoção em detrimento do transporte público.
Através da avaliação de nove capitais — incluindo Recife — a quantidade de passageiros transportados por dia nos sistema de ônibus urbano caiu de 631 em outubro de 1995 para 343 no mesmo mês de 2019. Entre os problemas, perder clientes encarece passagens e aumenta a lotação, significando prejuízo para as empresas e para a cidade.
Foi no metrô e no ônibus do Recife, respectivamente, que as estudantes Fernanda* e Larissa* (nomes fictícios) sofreram importunação. “Eu olhei para trás e intuitivamente para baixo, onde eu estava sendo encoxada, e vi que ele estava excitado. Olhei para o rosto dele, e ele saiu correndo, empurrando todo mundo para ir para outro vagão”, contou Fernanda. Já Larissa ficou paralisada. “Na hora, fiquei sem reação. Eu não tinha como me afastar muito e não conseguia falar nem fazer nada. O ônibus se movia, e ele se aproveitava para se esfregar em mim. Quando a gente desceu, a minha amiga falava comigo e eu não respondia, a lágrima só escorria, enquanto ela perguntava o que tinha acontecido. Já era tarde demais para fazer qualquer coisa”, relata. Nenhuma das vítimas realizou denúncias e ambas ficaram amedrontadas em andar nos transportes depois disso.
Visando mitigar os casos, o Grande Recife Consórcio de Transporte discute a importunação sexual com motoristas e cobradores duas vezes ao ano. Eles são orientados a parar o coletivo em uma delegacia para abertura de inquérito policial ao identificar um caso durante a viagem. Responsável pelo gerenciamento por ônibus na RMR, o consórcio também determinou que as operadoras colocassem câmeras de alta resolução dentro dos coletivos com o intuito de facilitar a identificação do agressor em inquérito policial. Já a CBTU Recife, ao ser questionada sobre quais esforços são feitos para evitar a violência, respondeu que "uma campanha contra assédio sexual foi feita no ano de 2019", e sugere que, caso a passageira seja vítima de importunação nos trens, entre em contato com a ouvidoria, através do número 2102.8580 (das 8h às 17h) ou com o Metrô Denúncia: 3455.4566 (24h).
Para a doutora em Direitos Humanos, mestre em Direito, advogada e professora Martha Guaraná, um dos motivos para a falta de notificações é o despreparo da justiça ao receber essas vítimas e a vergonha da exposição. “Acontece da mulher não ter coragem de estar na delegacia, porque tudo isso, querendo ou não, traz uma exposição para ela. Quando se trata de um crime como o de estupro, já gera uma exposição em que, muitas vezes, as mulheres ficam com receio de levá-lo adiante. Imagine algo que acontece com mais frequência, como são esses casos de importunação sexual?”, aponta. “Até quando a gente está diante de uma violência doméstica, às vezes a gente vai para uma delegacia — e estou falando como advogada — e ali a vítima não é recebida como deveria ser e não tem o apoio que deveria ter, então muitas vezes ela prefere deixar para lá”, diz.
Esse foi o caso da maquiadora Ana. Em novembro deste ano, ela recebeu cantadas na rua e, logo depois, foi abordada antes de conseguir entrar no carro. “Botei a mão no bolso para pegar a chave do carro e, quando eu olhei, ele estava atrás de mim. Apressei o passo. Ele me puxou pelo braço e disse ‘você está fugindo de mim por quê? Vem cá, não tenha medo de mim não’. Eu pedia para ele me soltar, e ele dizia ‘vem aqui comigo, vai ser bom’. Eu não conseguia nem falar direito, só queria sair dalí”. Mesmo com diversas pessoas ao redor, ninguém impediu o ato. Ela, então, chutou os testículos dele, conseguiu entrar no carro e dirigiu para casa.
No mesmo dia, a jovem foi até uma delegacia registrar um boletim de ocorrência. “A assistência que me prestaram foi praticamente zero. Eu disse o lugar que ele estava, mas disseram que era movimentado, que eu não sabia quem era a pessoa e que não tinham o que fazer. Eu argumentei que era um lugar com muitas lojas, com câmeras, mas responderam que precisavam de autorização para olhar as imagens”. Então, o episódio ficou para trás. Já ela, agora, vai começar a fazer sessões de terapia para se livrar do trauma, e seu caso é mais um dos que jamais entrarão para as estatísticas.
Para reprimir todos os tipos de crimes contra a mulher em Pernambuco, a Secretaria de Defesa Social declarou realizar uma série de medidas. Entre elas, está a realização, através do Departamento de Polícia da Mulher da Polícia Civil, de palestras e da distribuição de material educativo no metrô e nos terminais de ônibus para orientar mulheres a como proceder em caso de importunação sexual. Outra é a Operação Transporte Seguro, coordenada pela Polícia Militar, que faz blitz e abordagens nos coletivos de toda a Região Metropolitana do Recife, visando garantir a segurança de todos os passageiros de transporte público. A pasta orienta que as vítimas procurem uma das 11 delegacias da Mulher e, em locais que não há uma unidade especializada, procurem a delegacia de Polícia Civil mais próxima. Quando há emergência policial, elas devem ligar para o 190 Mulher. Quando necessitarem de orientação, podem discar o número 0800.281.8187, da Ouvidoria Estadual da Mulher.
Nina: um potencial desperdiçado
Criada por uma pernambucana e consagrada com diversos prêmios nacionais e internacionais, a tecnologia Nina se apresenta como uma alternativa para sanar a subnotificação. O programa permite que a população, seja como vítima ou testemunha, denuncie casos de importunação sexual na mobilidade. Já integrada ao aplicativo Meu Ônibus, da Prefeitura de Fortaleza, a Nina recebeu, de março de 2019, início da operação, até outubro deste ano, 2.334 denúncias. Dessas, 16% foram feitas por homens cisgêneros (que se identificam com o gênero que lhe foi atribuído no nascimento), mas nenhum se identificou na condição de vítima. Do total de notificações, quase 10% viraram inquérito policial; no entanto, o objetivo da empresa de coletar dados para, assim, impactar no planejamento urbano e tornar as cidades mais seguras, tem funcionado, segundo a fundadora Simony César.
“A gente sabe que problemas de infraestrutura urbana, buracos, má iluminação, etc., estão relacionados aos índices de violência. Se eu consigo identificar os pontos críticos para quem está na base da pirâmide social e consigo mitigar esses problemas, ofereço uma cidade segura sem necessariamente acionar a segurança ou deslocar viaturas. Em Fortaleza, identificamos alguns exemplos. Uma avenida em um determinado horário tinha um pico de denúncias, então uma equipe técnica da prefeitura foi designada para lá, e a questão era má iluminação. Então, a gente conseguiu baixar [os números] com base na interpretação de dados e trocando lâmpadas, não era colocando policiais. É esse tipo de inteligência que queremos gerar para o poder público e para as empresas de transporte”, explica a CEO.
Apesar de muitas tentativas da fundadora desde 2016, a Nina ainda não foi adotada no Recife. Em 2018, Simony ganhou um edital de uma empresa e pôde escolher três cidades para implantar o sistema. Segundo ela, a Prefeitura não tomou a única atitude que precisava: disponibilizar um técnico para fazer a ponte entre a Nina e os órgãos públicos responsáveis. Com os resultados de Fortaleza, a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação (Seduh), do Estado, entrou em contato para retomar as discussões, paralisadas posteriormente devido à pandemia. “Depois da eleição, não recebemos mais nenhum contato em relação à negociação. Porém, no plano de melhoria de transportes, neste ano, disseram que a Nina entraria no ano que vem, mas até agora não finalizaram nada de contratação efetiva da gente”, conta.
A Secretária Executiva de Políticas Urbanas da Seduh, Rachel Pontes, confirma a versão. Ela explica que, agora, a gestão aguarda o resultado de um parecer técnico que justifique a necessidade de contratação direta da empresa, sem realizar o processo de licitação, já que ela não teria concorrência. ”Não tenho nenhum analista de sistema, então passamos a demanda para a diretoria de tecnologia de informação do Grande Recife há pouco tempo. Acredito que essa análise deve sair em janeiro”, supôs. Ela acrescentou, também, que a busca por uma solução para prevenir e combater a importunação sexual é uma prioridade do governo e que está sendo acompanhada diretamente pelo secretário em todas reuniões sobre mobilidade.
O Grande Recife, por sua vez, esclareceu ter recebido a solicitação da Seduh no dia 17 de dezembro e que, neste momento, está "realizando uma prospecção de mercado para identificar a existência de outras empresas que ofereçam ferramentas tecnológicas para proteção às mulheres vítimas de violência e importunação sexual. Assim que esse processo for concluído, o Grande Recife entregará o parecer técnico demandado."
Transporte por aplicativos também é parte do problema
Em 22 de dezembro, em um carro de aplicativo, a social media Letícia* percebeu que o motorista se masturbava enquanto conversava assuntos banais com ela. “Já passei por algumas outras situações de assédio e costumo reagir, mas estava dentro de um carro em movimento, sozinha com ele, e a uns dois minutos do meu destino”, relata. Então, decidiu manter a calma e esperar. Quando chegou, contou o que aconteceu para o namorado, que ligou para o agressor. “O motorista ficou pagando de desentendido, ficou discutindo. Depois de um tempo, para a surpresa da gente, ele ligou e pediu desculpas. Falava ‘eu não sabia que ela estava vendo'."
O casal publicou capturas de telas do celular com a foto, nome, placa e veículo do condutor na internet, junto ao relato do acontecido, com o intuito de alertar possíveis novas vítimas; e a postagem alcançou mais de 40 mil pessoas. No dia seguinte, foram até uma delegacia da capital, que estava em horário de almoço. Então, deslocaram-se até a Delegacia da Mulher no Centro do Recife, que estava sem internet, e só conseguiram fazer o B.O. à noite. “O atendente disse que lá não era onde se resolvia, que era só para crimes domésticos. No outro dia de manhã, fui na delegacia que indicaram, mas estava em recesso”, conta. Até o momento da entrevista, Letícia ainda não havia conseguido denunciar o caso para a polícia. Já o aplicativo alegou que o motorista foi expulso da plataforma.
Vítima de importunação sexual, Letícia era uma de 75% das mulheres que se sentiam mais seguras ao usar transporte por aplicativo, segundo a pesquisa já citada dos Institutos Patrícia Galvão e Locomotiva. "Era", porque, pelo menos por enquanto, não usa mais os aplicativos. No estudo, o número passa para 68% entre as que mencionam o uso dos táxi. Entre as entrevistadas, 55% consideraram que a denúncia dos abusadores é mais fácil no caso dos transportes por aplicativo, sendo esse meio, para 45%, o que dá mais chances de que os assediadores sejam punidos. Para 91% das consultadas, o transporte por aplicativo melhorou sua capacidade de locomoção pela cidade e 94% afirmam que se sentem mais seguras sabendo que, se precisarem, podem chamar um transporte desse tipo para voltar para casa.
O que dizem os aplicativos
A Uber e o 99Pop afirmaram contar com tecnologias de compartilhamento da rota, identificação de mensagens impróprias no chat, de avaliações negativas e gravação de áudio durante a corrida, além de terem ferramentas que permitem que motoristas mulheres tenham a opção de receber somente chamadas de usuárias mulheres. Ambas possuem uma equipe de suporte 24h, todos os dias da semana, para dar suporte a eventuais vítimas. Se casos de importunação forem identificados, ocorre o bloqueio do perfil do agressor. A Uber disse checar antecedentes criminais ao registrar novos condutores. A 99, alegou ter expandido nacionalmente, neste ano, as câmeras de segurança embarcadas — especialmente para motoristas mulheres.
Caminhos para a melhora
Simony ressalta a urgência em ter representantes por todo o Brasil — tanto no poder legislativo, quanto no executivo — que entendam o que significa precisar de transportes coletivos, para que, só então, o sistema comece a deixar de representar uma fonte de traumas e medos para as mulheres, e passe a ser visto como uma opção aos carros. “Eu já rodei 18 estados do Brasil e só falei com uma secretária, a da cidade de Natal. Para você ver que quem pensa o transporte são homens, brancos e de classe média — que não são os usuários do sistema que eles planejam. Assim, acabam projetando transportes inseguros e fazem com que haja mais evasão, ao invés de atrair novos usuários para esse sistema”.
Para a doutora Jéssica Lima, é urgente pensar a mobilidade urbana de forma ampla, a fim de traçar soluções efetivas para garantir municípios mais seguros para as cidadãs. “Muitas vezes, o que está limitando a mulher no metrô à noite, por exemplo, não é nem o metrô em si, mas o acesso a ele. Às vezes, os arredores das estações são escuros, não têm boa acessibilidade, não têm calçada; uma série de fatores que faz com que elas nem consigam ingressar no sistema. Então, é importante pensar a mobilidade como um todo. A questão da iluminação é bastante importante para aumentar a sensação de segurança, embora não seja suficiente. É preciso realizar campanhas inteligentes nesse sentido, para que os homens se sensibilizem, entendam que não é certo [importuná-las]”, defende.
A especialista defende que é pensando a cidade de maneira universal — mas com prioridade para os grupos mais vulneráveis, que possuem um grau de mobilidade menor do que o homem branco de classe média, como "mulheres, crianças, idosos, trans e pessoas com deficiência" — que se cria um ambiente seguro e com a garantia da segurança para todos.
*A pedido das vítimas que relataram casos de importunação sexual, todos os nomes citados nesta reportagem são fictícios.
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