As lições de Medellin, cidade-modelo de transformação urbana, para o Recife, a capital da desigualdade social
Consultor internacional Jorge Melguizo foi o principal nome a conduzir a cidade colombiana em um modelo de urbanismo mundial. No Recife, o especialista contou ao JC suas experiências e "segredos" para transformar a vida da população
Como é possível a cidade mais violenta do mundo conseguir, em menos de duas décadas, tornar-se um exemplo mundial de transformação? Medellín, na Colômbia, responde: urbanismo social. A capital da província da Antioquia, agora, é modelo por ter conseguido reduzir as taxas de homicídios de 382 para 39 casos por 100 mil habitantes, entre as décadas de 1990 e 2010, por meio de investimentos em cultura e educação. Esse laboratório real, cujos números seguem a cair, mostrou como é possível transformar positivamente a vida dos cidadãos e inspirar cidades por toda a América Latina, inclusive, o Recife.
Parte do crédito do que hoje é a nova Medellín é dada ao então secretário Jorge Melguizo, jornalista e professor que apostou na cultura como principal pontapé para a revolução. Consultor internacional, Jorge esteve nesta semana na capital pernambucana para uma capacitação para funcionários da Rede Compaz (Centro Comunitário da Paz), que é inspirada nas Bibliotecas Parques colombianas. Em entrevista ao JC nesta sexta-feira (17), acompanhado do secretário de segurança cidadã Murilo Cavalcanti e da CEO da Regra3, Karla Paes, o especialista falou sobre aprendizados à frente da gestão pública, e o que falta para que o Recife enfim abandone os altos índices de violência e o título da capital mais desigual do Brasil.
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Para Jorge, é essencial que o Recife melhore a capacidade de escuta com as comunidades, e que amplie os projetos pontuais em ações institucionalizadas que envolvam diversos setores e secretarias. "Tem que ter muito conhecimento da cidade, da geografia física e humana, atuar com muita paciência, não é ação para um ou dois anos", defendeu.
Autor do livro "As Lições de Bogotá e Medellín - Do Caos à Referência Mundial", Murilo disse ter aprendido na Colômbia a necessidade de levar os melhores equipamentos públicos para as áreas mais vulneráveis da cidade, como as escadas rolantes situadas na favela San Javier. Ainda, que “o contrário de insegurança não é polícia, mas convivência", e por isso é preciso uma junção de políticas públicas para barrar a violência, não só o policiamento. “Precisamos entender a cabeça do jovem da periferia que está conectado com esse mundo globalizado. Como diria Renato Meirelles, o setor público é analógico, e o jovem periférico é digital. É isso que o Compaz tenta ser na vida de quem mais precisa”, explicou.
Ambos pontuam a necessidade, ainda, da integração entre a gestão pública, a sociedade e a iniciativa privada - hoje no Recife representada pela Regra3. "Quando fui para Medellín, disse a Murilo que não queria fazer outra coisa senão movimentar empresários a abrirem os olhos e terem responsabilidade sobre a sociedade. Muitos colocam tudo em cima do poder público, enquanto o terceiro setor está completamente perdido, e o empresariado lavando as mãos. A Regra3 surgiu por acreditar que a sociedade só vai para frente se os três estiverem unidos", contou Karla.
Jornal do Commercio - Você visitou aos quatro Compaz da cidade, que foram construídos a partir da ideia que você chama de urbanismo social - que leva equipamentos culturais e educativos às áreas mais pobres da cidade. Como essa parceria começou?
Jorge Melguizo: Sou o maior admirador do Compaz, que nasceu a partir do interesse de Murilo (Cavanlcanti) por Medellin. Ele buscou a essência do processo de transformação dela para servir ao Recife. As alianças passam mais pelas cidades que por países, que têm entendimentos muito distintos. Elas criam parcerias muito mais imediatas. Vários secretários do Recife querem ir a Medellin, e creio que podemos construir muitos aprendizados compartilhados.
JC - Como foi ver a herança do seu trabalho em funcionamento em um outro país?
Jorge Melguizo: Conversei ontem com uma menina que disse que o Compaz era sua segunda casa quando tinha 10 anos, e que, aos 16, é a sua segunda vida. Isso é lindo. Quando entramos no Compaz Dom Helder Câmara, vi dignidade, construção do público que o tem como referência. Temos cidades diferentes, com contextos diferentes, mas podemos compartilhar aprendizados. O Compaz não é uma cópia, mas uma síntese dos projetos de Medellin traduzidos no contexto do Recife, a partir das realidades específicas, entendendo que são dois modelos de gestão pública muito diferentes. O Compaz é uma aprendizagem para a América Latina.
JC - Você fala da troca de aprendizados entre cidades; mas é possível transformá-las em si? Elas não dependem de alguma forma dos governos estaduais e nacionais? Em Medellín, foram feitas alianças além dos atores municipais?
Jorge Melguizo: As cidades podem construir seus projetos de forma autônoma, mas é necessário também vincular aos governos estatais e nacionais, independentemente das ideologias e das posições políticas. Em Medellín, temos muita autonomia, mas também conversamos com os governos. Treze secretários do Recife estiveram juntos ontem na capacitação - e foi isso que funcionou em Medellin: trabalhar de maneira integrada e articulada, com secretários de todas as áreas. Os projetos são territoriais, não são de bairro, de setor, ou de partes da população. Precisamos pensar o que farmos com os adolescentes, adultos e idosos? Nessa articulação, o Compaz reúne esse trabalho com as populações.
JC - O que vem primeiro, diminuir a desigualdade social, que também influencia na criminalidade, ou a instituição do urbanismo social?
Jorge Melguizo: As cidades compartilham dos mesmos problemas, e de todos os países que trabalho, Colômbia e Brasil são os mais parecidos, seja na geografia, na riqueza ambiental ou na sociedade. Parecemos nos problemas, mas também nas oportunidades. A presença da polícia é uma evidência de um fator de criminalidade, não de segurança. É preciso construir nas comunidades um fator de convivência - com projetos sociais, educativos e estruturais. E eles sempre começam pela conversa, em entender o que podemos fazer juntos e o que queremos. Em alguns lugares, precisa de uma obra pequena para ganhar a confiança da comunidade.
JC - E como podemos começar a construir essas pontes?
Jorge Melguizo: O importante é pensar que se pode mudar a cidade, mas também a gestão pública, e há formas distintas de fazê-la. Nós entendemos que o planejamento urbano não pode ser um assunto só de arquitetos e engenheiros, tem que ter a Secretaria da Mulher e de Gênero, de Cultura, de Educação, da Juventude… Temos que pensar em formas distintas. Essa integralidade permite a simultaneidade de muitas ações. A cidade precisa atuar em escalas maiores, e a prefeitura não pode ser uma ONG, mas atuar como estado.
JC - Medellín é um laboratório da teoria urbanística que tanto é falada - mas pouco é cumprida. Como é possível sair do discurso e aplicar, na prática, medidas que transformem a vida em sociedade?
Jorge Melguizo: Aprendemos com os narcotraficantes em Medellín [que dominavam o território nos anos 80 e 90] três coisas que eles fazem muito bem, e que nós devemos aprender. A primeira é que eles investem muito orçamento, então nós temos que investir muito nas soluções, projetos sociais, educativos e culturais. A segunda é que eles criam cartéis, alianças com público, privado e comunitário, com toda a gente que está trabalhando pelo território. O terceiro é a influência nas pessoas, com dinheiro ou com a morte. Nós temos que sensibilizar e seduzir os outros. Tem que ter muito conhecimento da cidade, da geografia física e humana, atuar com muita paciência, não é ação para um ou dois anos. É preciso ter muita ternura e delicadeza para desativar um explosivo.