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Maestro passa véspera de Natal no sistema socioeducativo há 18 anos para resgatar sonhos de adolescentes no Recife

Educador musical Gil Amâncio abre mão de ceia em família para levar uma mensagem de esperança a adolescentes em conflito com a lei na Fundação de Atendimento Socioeducativo de Pernambuco (Funase) do Prado, na Zona Oeste do Recife

Katarina Moraes
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Katarina Moraes
Publicado em 24/12/2022 às 17:53 | Atualizado em 24/12/2022 às 19:07
KATARINA MORAES/JC
Gil Amâncio promove atividades musicais em grupo em presídios, clínicas de cuidados paliativos e outros locais durante todo o ano - FOTO: KATARINA MORAES/JC

Dezembro é o mês mais temido no sistema socioeducativo. O significado das festas de fim de ano e a impossibilidade de celebrá-lo agita os jovens que estão entre os portões de ferro, já que o nascimento, principal significado do natal, é antônimo daquela realidade que carimba a interrupção da vida. É neste lugar, onde ninguém quer estar, que um maestro pernambucano passa o 24/12 há 18 anos.

Só ou acompanhado, o educador musical Gil Amâncio sai de casa na véspera da festa cristã para ir de cela em cela, de porta em porta, de mente em mente que está na Fundação de Atendimento Socioeducativo de Pernambuco (Funase) do Prado, na Zona Oeste do Recife.

Usa o talento para resgatar sonhos e arrancar o estigma do fracasso de histórias ainda curtas, cujo curso, por vezes, começou a ser escrito antes mesmo do nascimento dos meninos e meninas - de imensa maioria negra - reclusos e distribuídos em dois pavilhões. No dia, até mesmo as visitas de familiares são raras. Neste sábado, tinham dez, no máximo.

Em um corredor molhado, repleto de celas onde entre um e três adolescentes esperam, ansiosos, suas sentenças por até 45 dias, posicionou - junto à poetisa Si Cabral - uma pequena e desgrenhada árvore de natal decorada. A plenos pulmões, gritaram para alcançar os ouvidos atentos de uma plateia sedenta por alguns minutos de distração, e começavam a contar a história do pinheiro.

 

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Gil Amâncio promove atividades musicais em grupo em presídios, clínicas de cuidados paliativos e outros locais durante todo o ano - KATARINA MORAES/JC
 

“Diz a lenda que, no nascimento do menino Jesus, o pinheiro se sentiu inútil, porque não pôde presenteá-lo com óleo - como a oliveira - nem com frutos - como a tamareira. Até que as estrelas desceram do céu e a iluminaram, arrancando o primeiro sorriso daquele que seria o salvador no cristianismo. Então, virou a árvore de natal”, descreveu. “Vocês também podem brilhar como a árvore”.

A cada um, questiona: “quando você era criança, você tinha um sonho, não tinha?”, pergunta Gil a Artur*, de 17 anos, que de cabeça erguida responde - “sempre fui sonhador e isso é o que me mantém vivo”. “Então, quando você sair daqui, vá atrás do seu sonho, para não voltar”. Como resposta, recebeu olhos brilhando e afirmando que assim faria, para dar orgulho à mãe.

Não se sabe qual o passado que fez o presente de cada um ser uma conversa com estranhos por trás de grades e cadeados, mas se vê que esse passado não foi capaz de apagar a inocência da juventude. Basta uma piada mal elaborada para Gil arrancar uma gargalhada generalizada. “Seu nome é Caio? Então cuidado para não cair novo!”.

Então, "Noite Feliz" na voz grave do maestro toma conta de todo o espaço. “Ó Senhor, Deus de amor. Pobrezinho nasceu em Belém. Eis na lapa Jesus, nosso bem. Dorme em paz, ó Jesus”. Ele pede que se juntem na cantoria - mas poucos sabem a canção. “Eles só sabem passinho”, disse um dos funcionários, e logo um menor embalou o brega funk “25 é natal, 31 é ano novo...”, mais adequado à realidade das periferias da Região Metropolitana.

Convoca, então, um coral de anjos caídos, que emociona até os agentes de segurança com os semblantes mais rígidos. “Eu digo ‘glo’ e vocês repetem, tá bom?”, e todos obedecem em uníssono esses e outros sons.

Nas celas, os símbolos de esperança estão por todos os lados, com paredes repletas de palavras de incentivo e desabafos. “Eu posso crer no amanhã porque ele vive”, “Deus me castigou severamente, mas não me entregou à morte'', diziam duas das pichações. Bíblias repousam ao lado dos travesseiros; por vezes, nas mãos de quem encontra a liberdade no evangelho.

Na ala feminina do Centro de Atendimento Socioeducativo (Case), adolescentes em conflito com a lei reconhecem o maestro. “Eu lembro de você do ano passado!”, disse Júlia.

 

“Comecei quando fui contratado por um projeto de uma ONG Tortura Nunca Mais através de uma ação da secretaria de Justiça do governo federal para fazer um trabalho de oficinas de humanização dentro de presídios e não parei mais”, contou o voluntário.

Dentro do sistema, viu jovens considerados cruéis e difíceis caírem em pratos em meio a suas atividades lúdicas de música. “Um disse: ‘o senhor poderia estar com sua família e o senhor está aqui’, como se não se sentisse merecedor disso. E falou que próximo ano eu estaria com a minha família, porque ele não ia mais estar lá”.

 

CORTESIA
Atividade feita junto aos poucos pais presentes no horário de visita - CORTESIA

Também enxergou, com dor, o desperdício de talentos. “Conheci um jovem que desarma qualquer alarme de carro nacional ou importado em menos de um minuto. Para mim, é um engenheiro nato. Tem muitos jovens com inteligências aguçadas que estão constrangidos, isolados, e o Estado não tem condição de administrá-los.”

“Qual a motivação?”, questiono. É difícil entender por que alguém abdicaria de uma ceia em família, em casa, por uma prisão. Mas Gil se cala. Pela primeira vez, não tem uma resposta pronta. "Chego mais tarde, Como posso escolher uma coisa ou outra? Chego atrasado, mas quando chego para ver meus filhos, eles ainda estão em festa."

É que, para ele, é natural como o acordar; não é uma escolha, mas a única opção para alguém que tem como missão na terra a transformação de vidas e que traz para o ano inteiro a solidariedade do natal. Faz sentido como um dos dizeres escrito por um jovem na parede da Funase: ‘pra ganhar, tem que perder. Essa é a lei do mundão’.

 

*Todos os nomes usados nesta reportagem são fictícios.

KATARINA MORAES/JC
Gil Amâncio promove atividades musicais em grupo em presídios, clínicas de cuidados paliativos e outros locais durante todo o ano - FOTO:KATARINA MORAES/JC
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Atividade feita junto aos poucos pais presentes no horário de visita - FOTO:CORTESIA

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