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Congresso insiste no orçamento secreto como trunfo do Poder Legislativo

Ponto de embate entre Legislativo e Judiciário é a falta transparência sobre a execução das emendas de relator, principalmente no que diz respeito ao parlamentar solicitante, que não é de conhecimento público

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Luisa Farias

Publicado em 26/11/2021 às 20:05
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Criadas no ano de 2019 como mais uma parte do Orçamento da União com gastos definidos pelo Poder Legislativo, as emendas de relator, ou emendas RP-9, têm dominado o debate em Brasília desde quando foi revelado o chamado “tratoraço” até atualmente, quando os presidentes do Congresso apostam em uma ofensiva para garantir a continuidade do seu pagamento, apesar de decisão contrária do Supremo Tribunal Federal (STF).

O pleno do STF referendou, no último dia 9 de novembro, a decisão monocrática da ministra Rosa Weber de suspender temporariamente os repasses do governo federal para as emendas de relator.

O ponto de embate é a falta transparência sobre a execução das emendas, principalmente no que diz respeito ao parlamentar solicitante, que não é de conhecimento público. Os recursos também não são divididos de forma igualitária como outras modalidades de emenda impositiva, sejam individuais, de bancada ou de comissão. As emendas de relator correspondem a uma fatia R$ 16,8 bilhões do orçamento de 2021.

“A modalidade identifica quais ações são atendidas com recursos públicos, mas ao não deixar claro quem é o real autor da emenda, uma vez que todas são apresentadas como despesas do relator-geral do Orçamento, são uma fraude à democracia (compra de apoio parlamentar) e princípios republicanos (moralidade, impessoalidade, publicidade), além de favorecerem os processos já conhecidos de corrupção nesse mecanismo, especialmente com a fragilização da transparência”, explica a cientista política Raquel Lins e criadora do Pernambuco Transparente.

Raquel aponta que o valor destinado para as emendas de relator está diretamente relacionado à votação de projetos de interesse do governo federal, como mais recentemente foi aprovada a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios.

“Poucos dias antes da votação da PEC, foram liberados mais de R$ 900 milhões entre os dias 28 e 29 de outubro, conforme levantamento feito pela Associação Contas Abertas. Parlamentares da base governista também denunciaram abertamente nos últimos dias, a compra de votos via emendas parlamentares em diversos outros projetos”, explica.

O cientista político Arthur Leandro classifica as emendas de relator como um “tesouro” na mão das principais lideranças do Poder Legislativo, que acabam mais beneficiados do que o próprio presidente da República neste aspecto, já que o Executivo acaba perdendo a capacidade de investimento, com um orçamento cada vez mais carimbado.

“É como se fosse uma consagração daquilo que com Temer se falava de uma reforma institucional que seria o semipresidencialismo”, disse. “Com a liberação desse recurso para emendas do orçamento pelos parlamentares, eles passam na prática, o Congresso passa a ter a prerrogativa de governar sem ter que se responsabilizar pelos resultados desse gasto”, disse.

O presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD) havia pautado para esta sexta-feira (26) o projeto que supostamente dá mais transparência às emendas do relator, mas devido a pressão de parlamentares acabou adiantando a votação para a próxima segunda.

O problema da proposta é que ela apenas determina que os nomes dos parlamentares que indicarem o uso das emendas de relator sejam divulgados no site da Comissão Mista de Orçamento (CMO). A medida, porém, não atinge destinações que já ocorreram em anos anteriores, o que está previsto na determinação do STF.

O deputado federal Carlos Veras (PT) defende a importância das emendas parlamentares para destinação de recursos, sobretudo aos municípios pequenos onde há pouca capacidade de articulação com o governo federal. “O que a gente tem defendido é que seja para todos, porque tem deputados que só tem R$ 16 milhões, as impositivas. Que todos independente da base do governo, oposição, tenham direito”.

Na avaliação do deputado federal Carlos Veras (PT), o maior entrave para que a mudança tenha efeitos retroativos é a burocracia. “A emenda individual está lá no portal o problema das extras é que elas vão no bolo, e destrinchar quem foi quem levaria um tempo grande e seria um processo bastante burocrático. O compromisso é que daqui para frente todo o processo será democrático, ficará mais fácil dar transparência, ter o nome do parlamentar”, argumentou.

Para o presidente estadual do MDB e deputado federal, Raul Henry, as emendas de relator deveriam ser extintas e estes recursos deveriam ser alocados em obras estruturantes para o país, a exemplo da conclusão da ferrovia Transnordestina, e investimentos em portos como Suape e Pecém. “A prerrogativa de votar o Orçamento é do Poder Legislativo, mas quem tem o dever de governar e indicar os investimentos estratégicos é o Poder Executivo. O que estamos vendo é a diluição de R$ 20 bilhões, que não irá realizar nenhum projeto estratégico”, pontua Henry.

O emedebista também destaca que os parlamentares já possuem a prerrogativa de usarem as emendas individuais e as emendas de bancada, que antes eram direcionadas através de acordos com os governos estaduais, mas agora estariam sendo “fatiadas” entre os deputados. Além disso, a emenda de relator é uma ferramenta de desequilíbrio para quem possui mandato e disputa a reeleição. “É uma vantagem enorme sobre os deputados que têm acesso às emendas individuais. Você tem os parlamentares que seguem a regra e outro que divide entre si R$ 20 bilhões. É prejudicial ao processo democrático”, critica.

Para o ano de 2022, a proposta dos parlamentares é de um valor 139% superior ao previsto neste ano reservado no orçamento para as emendas em geral, chegando a R$ 112,4 bilhões, das quais R$ 3,3 bilhões correspondem às emendas de relator.

O presidente do DEM-PE, Mendonça Filho, concorda com a máxima de que os parlamentares detentores de mandato saem em vantagem na tentativa de reeleição comparado aos demais candidatos, muito por conta do acesso às emendas.

“Evidente que sim, é natural. Não é só uma vantagem com relação aos novos, evidentemente que a minha situação é mais dura (por não ter mandato). Mas isso não se dá só pelo direito a emenda parlamentar. Os parlamentares que têm direito estão no palco, no exercício do seu mandato, dedicados a essa função. O detentor de mandato tem uma vantagem natural, isso é. Se você já tem uma vantagem natural, se amplia com a emenda de relator”, disse.

“Quem está com mandato, quem tem a capacidade de transferir os recursos consegue negociar os apoios locais. As pessoas que estão buscando reeleição e as lideranças municipais que precisam dos recursos apoiam os deputados e senadores em troca dos recursos. Isso é um fator que garante a renovação dos mandatos de quem hoje dispõe desses recursos. Se não garante, fortalece bastante a capacidade de se reeleger basicamente porque o político fica com recurso na mão para investir da forma que ficou mais conveniente”, complementa Arthur Leandro.

O ex-senador Armando Monteiro Neto (PSDB) corrobora a tese de que os recursos destinados à RP9 deveriam ser realocados em projetos que possam beneficiar, acima de tudo, a população brasileira. “Os recursos que vêm sendo aplicados nessa modalidade, terminam sendo pulverizados em termos de retorno. Em um país que não tem dinheiro para pagar auxílios e sustentar programas sociais, não tem sentido destinar R$ 20 bilhões para emendas”, declara.

O líder tucano também acredita que o posicionamento do Congresso em descumprir a determinação do STF no tocante a transparência deste orçamento, é ruim para o parlamento. “Se o STF diz que precisa informar quais foram os beneficiados de 2020 e 2021 e pede para que isso seja divulgado, mas o Congresso diz que não é possível, fica confirmado a impressão de que são secretas, ou porque não tem registros adequados ou continuam escondendo essa distribuição”, observa Monteiro Neto.

O deputado federal Tadeu Alencar (PSB) explica que “as emendas em si não seriam negativas”, mas a falta de isonomia e transparência são os pontos prejudiciais. “As emendas normais - se republicanamente utilizadas - cumprem um papel importante, porque elas ajudam a suprir a falta das coisas, de um modelo federativo perverso”, afirma.

“O Congresso Nacional tem legitimidade para normatizar qualquer matéria. Mas não pode se valer disso para alcançar decisões judiciais que foram dadas antes. A exigência de transparência também existia antes, materializada no princípio da publicidade. Acho que prejudica a imagem do parlamento perante a sociedade. O STF vai ter que se posicionar.”, declara Tadeu Alencar.

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A queda de braço entre o STF - que decidiu suspender o pagamento das emendas que fazem parte do chamado “orçamento secreto”, além de determinar transparência para a destinação desse recurso -, com o Congresso Nacional, que tenta revogar essa decisão, poderá gerar uma crise institucional entre os poderes. “O Supremo Tribunal Federal é o árbitro final da Constituição e, uma vez que ele decide, o Legislativo precisa acatar”, afirma o professor de Ciência Política da Unicap, Antônio Henrique Lucena.

Para Raquel Lins, o caso das emendas de relator deixa a imagem do Congresso “à deriva” e tem sido alvo de diversas entidades da sociedade civil. “O próprio vice-presidente Mourão acabou declarando publicamente que a “intervenção” do STF sobre elas foi oportuna, tamanho o descalabro. Pela repercussão da questão, inclusive junto à sociedade, acredito que irão arrefecer os ânimos e encontrar um ponto de convergência”, afirma.

Classificado como uma “nova forma de mensalão”, segundo o cientista político Antônio Henrique, a liberação dessas emendas coloca os detentores de mandatos em vantagem na corrida eleitoral. “É uma forma de você manter a base para as votações que são importantes para o governo. Então, o Arthur Lira joga exatamente com isso, ou seja, aquilo que já foi gasto e consolidado, pode ser utilizado como recurso eleitoral. Os parlamentares podem dizer que puderam trazer tal coisa pro município e para o estado”, explica.

A cientista política Raquel Lins ressalta que esse processo é ruim para a população e que os órgãos de controle já explicaram as razões negativas sobre o essa forma de barganha. “A própria CGU (órgão de controle interno da administração federal) detectou problemas nas emendas recentes, que tiveram alguns contratos cancelados após indícios de sobrepreço nos chamados contratos do ‘tratoraço’”, declara.

“Um outro estudo mais aprofundado, do TCU, com um recorte entre os anos de 2014 à 2017, demonstrou com maior amplitude a ineficiência das emendas: falhas na escolha de projetos que sejam prioritários para a população, a fragmentação antieconômica dos recursos, a ausência de critérios que contribuam para diminuir desigualdades e a ineficiência do processo que leva o dinheiro até a ponta, o que acarreta em atrasos e falta de execução do orçamento”, explica Raquel.

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