A resposta das instituições às invasões ao Capitólio, nos Estados Unidos, há dois anos, e aos prédios do Congresso, do Palácio do Planalto e do STF, em Brasília, no último domingo, podem transmitir a impressão de normalidade institucional. Mas é preciso ir mais fundo no exame das indignações expressas com violência nesses ataques.
Para o filósofo e professor de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Filipe Campello, mesmo que a destruição das instituições seja uma pauta até ingênua, a ameaça lança a oportunidade de se pensar alternativas ao modelo de democracia liberal, cada vez mais questionado por parcelas da população. O que não é fácil: "O vocabulário da democracia liberal venceu no sentido de que é muito difícil imaginarmos algo diferente dele", afirma o professor, em entrevista ao JC. Para Filipe Campello, é importante que as instituições democráticas possam se aperfeiçoar ou mesmo ser transformadas, ao invés de se reivindicar a destruição pela destruição.
Autor de "Crítica dos afetos" (Autêntica, 2022), Campello defende que "a questão é de como afetos que estão sinalizando um sintoma de mal-estar e indignação podem ser mobilizados de maneira produtiva, por exemplo, para reinvindicação de direitos e para comunicar e partilhar formas de vida".
- Você observa pelo menos duas maneiras de se interpretar a invasão aos Três Poderes, no último domingo. Quais são?
Filipe Campello - A primeira é, digamos, "law and order", vigiar e punir. Essa é a maneira consolidada no modelo institucional das modernas democracias liberais. Quando o discurso da esquerda se reduz a essa posição, ela não está fazendo algo muito diferente do que já víamos na direita liberal. Uma outra maneira de entender o que está em jogo é constatar que muitos dos que foram a Brasília, mesmo cooptados pela retórica da ultradireita, expressam um sintoma de indignação e mal-estar que não necessariamente devem ser descartados. Muitas dessas pessoas que hoje estão presas não são representantes das elites e detentores de capital econômico, senão trabalhadoras, evangélicas, ou, como já foi dito, pessoas mais próximas do lumpesinato. Elas não são apenas movidas pelo ressentimento diante de perdas de privilégios e status social ou econômico, mas não se sentem representadas pela classe política, se sentem precarizadas mesmo sem saber distinguir com clareza suas causas. Acontece que as formas que encontram de reação são incapazes de renovar as instituições. Sua pauta é unicamente a destruição delas, e sobretudo literal - o que, na verdade, é inócuo e até ingênuo do ponto de vista político.
- Na primeira forma de enxergar, você questiona o fim da história pela compreensão de vitória da democracia liberal. Cabe a pergunta: toda defesa democrática é liberal?
Filipe Campello - O meu ponto é que a primeira maneira é uma resposta característica do liberalismo diante de ameaças iliberais, como a que tem sido vista no caso do trumpismo e do bolsonarismo. Nesse caso, a lição é a de que ameaças autoritárias devem ser confrontadas pelas instituições democráticas. Não discordo que deva haver essas respostas dentro do rigor da lei. Mas fica a questão: isso então quer dizer que o modelo que temos das modernas democracias liberais venceu? Ou ainda há espaço para pensar outros modelos?
- E há?
Filipe Campello - O que acho importante é colocarmos as coisas em perspectiva. Tanto no caso do Capitólio nos Estados Unidos como no da invasão no Brasil houve uma reação enérgica que pode levar à conclusão de que as instituições estão funcionando. Mas o ponto não é esse. A questão que me parece mais premente é o que de fato entendemos sobre esse funcionamento, e até mesmo quais são essas instituições. Se o debate continua se orientando apenas pela pergunta de se as instituições funcionam ou não, perdemos de vista a possibilidade de perguntar por outros modelos que ainda não estão dados. O vocabulário da democracia liberal venceu no sentido de que é muito difícil imaginarmos algo diferente dele.
- Na segunda forma de enxergar, você destaca o alcance amplo da indignação que atinge não apenas a democracia, como a política e as instituições em geral, a exemplo da imprensa. Mesmo sem nitidez nas causas, a arregimentação dos indignados pode continuar? O que isso traz como desafio, não apenas para o governo, mas para as instituições e a compreensão de mundo atrelada à democracia?
Filipe Campello - Temos que distinguir aqui entre posições de curto e longo prazo. O curto prazo é pragmático, real politik. O que ocorreu nas últimas eleições foi atípico. Não foi um pleito entre esquerda e direta, mas entre o campo democrático e o antidemocrático. Evidentemente a esquerda precisou fazer concessões, e falar em frente ampla foi tão ampla que significava abarcar quem não colocava em xeque a própria democracia. A questão agora que se impõe é como as respostas a sintomas de insatisfação podem vir de um campo mais progressista. O que temos visto nos últimos anos é que quem melhor soube responder a isso foi a ultradireita porque ela consegue mobilizar emoções políticas, digamos, mais imediatas, como nacionalismo, sentimento de pertencimento, e até mesmo o propósito de lutar por uma causa, mesmo fictícia, como resistência diante de uma suposta ameaça do comunismo. O que a ultradireita tem feito é querer dar um verniz democrático a essas mobilizações de teor emotivo, quando na verdade estão pondo fogo no tecido inflamável de paixões antidemocráticas.
- O verniz democrático não resiste a uma derrota eleitoral?
Filipe Campello - O que temos então é outro paradoxo. Trump adotava esse discurso, mas ele só valia quando estava no poder. Quando perde, logo esse discurso dá lugar a um discurso antiestablishment, antiinstitucional. A lógica é parasitária e de ocasião: ela se utiliza de um sentimento antissistema para chegar ao centro desse mesmo sistema. O mesmo valeu para Bolsonaro. O que move essas paixões essencialmente antidemocráticas não são, por exemplo, pautas sociais ou algo do tipo, mas a pauta se reduz à destruição das instituições. Já estava claro que o bolsonarismo não aceitaria qualquer outro resultado que não fosse a eleição de Bolsonaro. O discurso de "nós, o povo" só vale para um séquito, que são eles próprios.
- O ministro da Justiça, Flávio Dino, afirmou que não vivemos uma normalidade institucional, pois fomos afetados pela “inoculação de valores exóticos na sociedade”. Essa interpretação aponta uma espécie de contaminação de fora para dentro, como se o radicalismo fosse um vírus estranho ao corpo social. Mas não seria adequado incluir na interpretação a corrosão estrutural da representatividade das instituições?
Filipe Campello - A questão que distingue o campo democrático do iliberal é o método. As instituições democráticas preveem formas legítimas até mesmo de se questionar o resultado dos pleitos eleitorais, como já aconteceu nos EUA e no Brasil. Da mesma forma, é prevista possibilidade de questionamento de corrosão estrutural que passa pelo direito à assembleia, protesto e mobilizações. É o caso do Chile, onde havia um horizonte de mudanças institucionais e até mesmo da própria constituição cujo texto, ainda que tendo sofrido várias alterações, ainda havia sido estabelecido durante a ditadura de Pinochet. Há muitas variáveis até mesmo contingentes para entender o desenrolar de protestos (penso aqui p. ex. nas diferenças entre a primavera árabe, Occupy Wall Street, Junho de 2013 no Brasil e o caso chileno), mas o que deve estar no horizonte de mobilizações é que instituições possam se aperfeiçoar ou mesmo ser transformadas, ao invés da destruição pela destruição.
- Como a crítica dos afetos pode auxiliar no entendimento do que estamos presenciando no Brasil?
Filipe Campello - Tenho pensado sobretudo em como podemos pensar arranjos institucionais para além do que está dado ou mesmo do que já existiu no passado. Ao invés de entendermos os afetos como perigosos para a democracia, como foi interpretado por boa parte de teorias liberais, podemos pensar em formas de construção e circulação de afetos democráticos, inclusive em seu potencial de aperfeiçoamento. A questão então é de como afetos que estão sinalizando um sintoma de mal-estar e indignação podem ser mobilizados de maneira produtiva, por exemplo, para reinvindicação de direitos e para comunicar e partilhar formas de vida. Penso que hoje esse potencial de retificação, inclusive política, é bem mais promissor por exemplo no que encontramos entre povos originários e imigrantes, que abrem para outros sentidos de autodeterminação e emancipação que não estão dados tradicionalmente nos modelos liberais.
- O papel das fake news na “inoculação dos valores exóticos”, contudo, é inegável. A seu ver, como reduzir a influência da produção sistemática de mentiras para esse descolamento entre parcela da população e as instituições?
Filipe Campello - O que temos visto não se reduz a uma lógica estrita de desinformação. Isso porque chegamos a um ponto que não se trata apenas de circulação de notícias falsas, mas da coexistência de realidades paralelas. Eu tenho chamado esse fenômeno de narcisismo epistêmico, quando se assume uma posição refratária à revisão de crenças que acaba por minar o próprio debate público. É quando o que importa não é entender se minhas crenças encontram correspondência na realidade, mas que elas sejam validadas de maneira viciosa por um grupo com o qual já compartilho previamente de outras preferências. O que move é menos o conhecimento e mais o sentimento de pertencimento e autoestima.
- O que une o grupo, além das mensagens de identidade?
Filipe Campello - O que muitas dessas pessoas que estavam acampadas em frente aos quartéis sentem é um vácuo institucional. Em algum momento se sentem abandonados até mesmo pelas Forças Armadas, sua última esperança. O que resta é o saudosismo autoritário. No belo filme “Argentina, 1985”, que acabou de vencer o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, vemos a emocionante narrativa de quando pela primeira vez na história um tribunal civil condenou uma ditadura militar. Por aqui sequer temos a história de um julgamento da ditadura para contar, e essa é uma das razões porque muitas outras histórias reais permanecem distantes de nossa memória. Umas das principais causas dessa persistência da fragilidade democrática se deve ao fato de que posturas autoritárias continuam se sentindo anistiadas.
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