Direito legal

Mulheres que engravidam e não querem ser mães podem entregar filho para adoção

Legislação é de 2009, mas muitas ainda desconhecem o direito de entregar os bebês

Margarette Andrea
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Margarette Andrea
Publicado em 08/07/2018 às 8:38
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Legislação é de 2009, mas muitas ainda desconhecem o direito de entregar os bebês - FOTO: Free Imagens
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"Na minha cabeça já estava decidido: ia dar para qualquer pessoa na rua ou jogar em qualquer lugar, numa lata de lixo.” O destino traçado para Joaquim, ainda na barriga da mãe, era desolador. Vítima de estupro, Joana, de 39 anos, não queria nem olhar para a cara do bebê que crescia dentro dela, para não lembrar da violência que sofreu e que a levou à quarta gravidez. Mas, na maternidade onde ocorreu o parto, os planos mudaram. Ela foi informada de um direito assegurado por lei federal às mulheres que engravidam e, por qualquer motivo, não querem ser mães: o de entregar o filho para adoção. Com a cobertura legal – que já tem quase uma década, apesar de muitos ainda a desconhecerem – o futuro de Joaquim e de outros 59 bebês ganharam novas perspectivas, no colo de mulheres cujo maior desejo era vivenciar esse tal de amor materno que tanto se fala.

Ainda durante a elaboração da Lei 12.010/2009, que permitiu a entrega, a 2ª Vara da Infância e Juventude do Recife criou o Mãe Legal, que já fez 256 atendimentos até agora, encaminhando 37 crianças ao Cadastro Nacional de Adoção (CNA). Seguindo o exemplo, o programa Acolher foi instituído pela Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de Pernambuco, em 2011, e chegará a 18ª comarca no Estado (Petrolina) em agosto, tendo realizado, até hoje, 94 atendimentos no Grande Recife e interior e encaminhado 23 crianças para o CNA.

O processo de atendimento e encaminhamento é sigiloso, por isso Joaquim e Joana são nomes fictícios. Mas o depoimento é real e foi fornecido pela Justiça, onde as mulheres chegam por meio de uma rede de proteção (maternidades, conselhos tutelares, serviços de assistência social) ou por conta própria, ainda gestantes ou logo após o parto. Elas são acolhidas por equipe multidisciplinar (com psicólogo, assistente social, pedagogo e advogado), que avalia e registra a situação de cada uma e esclarece que entrega responsável não é abandono, trabalhando a questão da culpa.

A maioria desiste antes mesmo de se abrir o processo, pois passa a receber apoio familiar que não tinha – neste caso há acompanhamento por seis meses, para se evitar uma adoção ilegal. As que seguem em frente alegam falta de suporte familiar, não convivência com o pai da criança, estupro, dificuldades financeiras ou simplesmente ausência de vontade de ser mãe. Tudo é registrado, filmado e arquivado digitalmente, com todos os dados de quem está fazendo a entrega, para posterior consulta. Caso a criança queira, ao completar 18 anos poderá conhecer sua origem biológica, ou antes, se houver acompanhamento dos pais adotivos.

CULPA

Nos arquivos, muitos registros de culpa, medo, dor, vergonha e desespero. “Não conseguia sentir afeto de mãe, como senti pelos outros, só pedia perdão a ele, por ter que entregá-lo”, lamenta, em seu depoimento, Julia, 31 anos, mãe de dois filhos que cria sozinha e que também ficou grávida após estupro. “Não queria deixar na rua. Queria o melhor para ele”, declara Iara, uma estudante de 19 anos do interior que escondeu dos pais a gravidez, durante os nove meses. Não há, segundo a Justiça, qualquer caso de arrependimento posterior à adoção.

“O objetivo maior do programa é acolher, proteger e empoderar a mulher, pois seu corpo não pertence ao Estado, nem à Igreja, nem ao homem. Pertence somente a ela mesma. E, como diz a filósofa Elisabeth Badinter, o amor de mãe é uma construção cultural, não é aplicado a todas as mulheres e a lei lhes assegura o direito de não quererem maternar”, afirma o juiz Élio Braz, titular da 2ª Vara e coordenador do programa. “Recebemos mulheres de todas as idades e classes sociais, inclusive de nível superior. O que elas têm em comum é o fato de não terem afeto pelo filho, o desejo de ser mãe daquela criança. Com a entrega responsável, a criança também tem seus direitos assegurados. Todas que foram entregues estão em famílias que tinham tempo e amor para elas”.

CASAIS

Conforme o magistrado, de 2009 para cá muita coisa mudou. Inicialmente as mulheres eram encaminhadas exclusivamente pela rede de atendimento, mas em 2017, 46% da procura pela Justiça foi espontânea. “Um fenômeno bem novo é que 31% chegaram à Vara junto com o pai da criança, no ano passado. São casais que já têm filhos, cuidam bem deles, mas não estão disponíveis para criar outro”, observa. Em nenhum caso em que parentes foram acionados quiseram fazer a adoção, no ano passado.

Os dados de 2017 ainda apontam que 61% das mulheres estavam desempregadas, 31% eram estudantes e só 8% trabalhavam. A maioria (77%) não convivia com o pai da criança e (54%) tinha entre 19 e 29 anos, embora haja procura desde os 12 anos e após os 40. Detalhe: 62% já tinham dado outras crianças para familiares ou desconhecidos criarem. “Isso mostra que a situação já era consolidada. E com a lei, a adoção passou a ser feita de forma responsável”.

Élio Braz relata que uma mulher entregou três crianças pelo Mãe Legal. “Perguntamos se ela queria ser encaminhada para laqueadura das trompas, mas ela disse que não, nós respeitamos, é um direito dela”, conta. Mas ele descarta qualquer possibilidade de o programa induzir mulheres a relaxarem nos cuidados para não engravidar. “Isso é fora de qualquer lógica. A dor e o sofrimento de quem passa nove meses de uma gravidez para depois entregar o filho é enorme”, avalia.

ACOLHER

Coordenador do Acolher, o psicólogo Paulo Teixeira diz que lidar com o preconceito e desconstruir o mito do amor materno no interior é ainda mais difícil do que na capital. “Há uma questão cultural e/ou religiosa de que a mulher tem que ser mãe. Então, em alguns lugares ocorre uma certa hostilidade, quando chegamos para divulgar o programa. Mas temos percebido uma demanda reprimida, pois quando a informação chega a procura é imediata. Muitas mulheres não sabem que têm o direito de não ser mães. E as crianças, o de crescer em um lar que a deseje.”

Paulo Teixeira salienta que a entrega responsável tem, também, um caráter preventivo, pois ainda há muitas adoções ilegais, em que os pais entregam seus filhos, em troca de dinheiro. “E são muitos os casos em que há o tráfico de criança, de órgãos, a exploração sexual. Então, o programa evita que a criança seja vítima se violência, seja tratada como mercadoria e viva com pessoas que não estão disponíveis para ela. Evita também possíveis problemas jurídicos, arrependimentos, extorsão.”

O psicólogo diz que o preconceito ainda acontece inclusive dentro da rede que deveria acolher a mulher. “Há quem insista na maternidade, em forçar a mulher a ver e amamentar a criança, acreditando que isso a fará mudar de ideia. Mas a lei prevê que ela não pode ser constrangida. Não vale a pena obrigá-la. Afeto não pode ser imposto.” Em média, a espera por bebês é de cinco anos. Com o Mãe Legal e o Acolher, a adoção é concluída em torno de dois meses.

Atualmente, há 43,9 mil pretendentes a adoção no cadastro nacional e 19% deles optam por crianças de até 3 anos, mas entre as disponíveis em todo o País, apenas 52 estão nessa faixa etária, enquanto há 2.018 adolescentes entre 15 e 17 anos à espera de uma família. Em Pernambuco, são 1,2 mil pretendentes cadastrados e 204 crianças disponíveis.

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