O vazio hoje silencia a morada de número 198 da Rua Compositor José Dantas. Lá, o almoço deste domingo não será de festa, a alegria não vai chegar. Lá, no pé da ladeira, no Vasco da Gama, um dos altos da Zona Norte do Recife, Antônio Carlos chama-se saudade. Ele vai esperar, em vão, ser acordado com o barulho do filho mais velho, ansioso para lhe presentear. No ano passado, nesse mesmo dia, a felicidade foi em dobro. De manhã, ganhou uma carteira. A mesma que carrega no bolso e faz questão de mostrar. À noite, um perfume. Mateus comprou os dois presentes com o dinheiro que, aqui e ali, ganhava do pai. Economizou e fez a surpresa. Os dois não se desgrudavam. De manhã, o filho acordava o pai para acompanhá-lo no trabalho de pedreiro, voltava para casa da mãe (com quem morava), almoçava, ia para a escola. Era assim sempre. Até a noite do último dia 6. Sábado, garotada na rua, Mateus vinha da lan house, só viu a correria, sirene, perseguição, policiais atirando. Apavorou-se. Correu para se proteger. Foi derrubado com um tiro na nuca disparado por um PM. Mateus, 14 anos, filho de Antônio Carlos Tavares de Melo, 37, caiu praticamente morto, cuspindo sangue, na ladeira do Vasco, quase na porta de casa.
Não é só o silêncio que impera na residência do pedreiro. É a revolta, a injustiça, a invisibilidade. “Não se pode tirar a vida de ninguém assim. Ainda mais de um adolescente, um menino cheio de sonhos, de expectativas.” Antônio Carlos não sabe ler nem escrever. Não desenha nem o nome. Gostava de imaginar que a história do filho seria diferente. “Ele dizia que ia estudar para ser economista. Guardava todo o dinheiro que eu dava a ele. Às vezes, até me emprestava. Era meu parceiro, meu companheiro de vida.” Na última terça-feira, um dia após Mateus não resistir e falecer no Hospital da Restauração, o jornal estampava a dor de Antônio Carlos: “Arrancaram um pedaço de mim”.
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O pedreiro não acredita em bala perdida. “Por que só existe bala perdida na periferia?” Cansado de saber a resposta, faz um apelo: Governador, saia de seu gabinete e venha ver como a Polícia Militar de Pernambuco trabalha dentro da favela. E depois coloque essa mesma polícia em Boa Viagem para o senhor ver o sistema como é. A diferença é muito grande. Porque lá eles têm medo de dar uma lapada e o cara ser filho de juiz, de empresário. Aqui na favela eles sabem que não tem isso. Chegam aqui, batem em todo mundo, atiram, fazem o que querem. Isso é errado. Somos gente. Não, bandidos.”
Por não acreditar em bala perdida, decidiu que não vai calar. Foi à Corregedoria da Secretaria de Defesa Social. Denunciou os dois policiais da CipMotos que, na noite daquele sábado, em perseguição a um carro com três suspeitos, sentenciaram à morte Mateus. Na mesma noite, enquanto o filho era socorrido, conta que foi ameaçado por um dos PMs. “Primeiro, ameaçaram meu sobrinho, que presenciou tudo. Disseram: ‘Cuidado, tu sabe que o rolo é grosso. Fica na tua.’” A indignação somou-se à dor. “E é só chegar aqui e ameaçar os outros? É por isso mesmo que eu vou em frente. Eu disse na cara do PM que matou meu filho: ‘Isso não vai ficar assim. Eu vou até o final. Mesmo que eles me peguem na rua e me matem. Eu só vou descansar quando ver esses matadores na cadeia, presos. Podem passar 10 anos. Eu só sossego quando a justiça for feita.”
No dia em que o filho morreu, Antônio Carlos organizou um protesto no Vasco da Gama. Mandou fazer camisas com a foto do adolescente, fechou a rua. Estava enterrando o menino, quando os moradores do bairro fizeram um segundo protesto, que, em algum momento, teve cenas de vandalismo. “Não concordo. Alguns se aproveitaram para fazer coisa errada. Mas entendam: a gente vive oprimido, machucado. Protestar é a única forma de eles nos ouvirem.”
A coragem e a firmeza de Antônio Carlos têm nome: Mateus. “Se eu ficar calado, é como se fosse aceitar uma segunda morte. Vou morrer por dentro, um pouco a cada dia, se deixar esses policiais ficarem livres. Meu filho vai dizer: meu pai se acovardou.” O que não faltam são conselhos para o pedreiro desistir, deixar para lá. O medo querendo silenciar a dor. A resistência começa em casa. “Minha mãe me disse: ‘Fica quieto. Tu vai terminar morrendo. Já enterrei um neto. Vou enterrar o filho’. Mas eu vou morrer lutando. Eu vou brigar até que esses caras sejam expulsos da polícia. Não são policiais, são bandidos de farda.”
É por Mateus, mas é também para que não aconteça mais. “Eles não podem ficar na rua, eles mataram uma criança. Se eu não for atrás, amanhã eles entram em outra favela e matam outro adolescente. E vai ficando por isso mesmo. Outros pais vão chorar a mesma dor que sinto hoje.”
Mateus Alexandre Teixeira de Melo. Antônio Carlos diz que não deixará o nome do filho ser esquecido. “Ele agora está lá, sozinho, no cemitério. E, eu aqui, desolado. Mas, juro. A morte dele não será em vão.”
Mateus foi o terceiro caso no Recife, no intervalo de 15 dias, de adolescente vítima de tiros disparados pela arma de um policial. Em tempos de violência desenfreada, difícil pensar no Dia dos Pais sem ouvir o silêncio ensurdecedor da casa do pedreiro Antônio Carlos.