Quando o Mais Médicos foi lançado, em 2013, sobravam vagas em postos de saúde, especialmente em municípios do interior do País. Após o fim da parceria com o programa, depois de o governo de Cuba ordenar que seus médicos deixassem o Brasil, vários são os grupos de cubanos que estão se deslocando das cidades brasileiras onde residiam, muitas delas distantes dos centros urbanos, para os aeroportos. A partida precoce e inesperada fez centenas de municípios ficarem sem médico na atenção básica em saúde na rede pública, segundo revela um levantamento do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).
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A estimativa preliminar apontava que, pelo menos, 284 cidades (em 19 Estados do Brasil) devem ficar sem assistência de médico com a saída dos cubanos. Entre elas, segundo o levantamento do conselho, está Itacuruba, no Sertão pernambucano, a quase 500 quilômetros do Recife. O último balanço do governo federal, divulgado ontem, mostrava que 96,6% das vagas abertas por seleção para preenchimento dos postos deixados pelos médicos cubanos já haviam sido ocupadas.
Em agradecimento à médica cubana que ofereceu assistência aos moradores, a gestão do município do Sertão do São Francisco demonstrou gratidão em rede social na terça-feira (20): “A Prefeitura de Itacuruba agradece à Dra. Dalgis pelo tempo dedicado aos cuidados com a saúde da população. Muito querida, sempre atuou com amor à profissão, conquistando o respeito e o carinho do nosso povo. Lamentamos o seu retorno a Cuba, ao mesmo tempo em que desejamos muito sucesso nesta nova fase”. Com cerca de 5 mil habitantes, Itacuruba tem índice de desenvolvimento humano municipal (IDHM) baixo (0,595), segundo o ranking das Nações Unidas. O índice varia de 0 a 1. Quanto mais próximo de 1, maior o nível de desenvolvimento humano. A saúde tem peso imenso para otimizar ou reduzir o IDHM, pois se trata de uma dimensão (ao lado de renda e educação) usada para medir o progresso da região.
Assim como Itacuruba, a cidade de Manari, também em Pernambuco, no Sertão do Moxotó, a cerca de 400 quilômetros do Recife, tem IDHM (0,487) considerado baixíssimo, devido à ausência de um padrão de vida que garanta as necessidades básicas, representadas pela saúde, educação e renda. Na quarta-feira (21), em nota de esclarecimento à população, a Secretaria de Saúde de Manari informou que o atendimento dos médicos cubanos já havia sido suspenso. “Ressaltamos a diferença que esses profissionais fizeram na melhoria da organização, do acesso e da qualificação da atenção básica nos municípios brasileiros nesses cinco anos do programa. Além de nosso reconhecimento e agradecimento, devemos a eles, neste momento, todo o nosso apoio e compreensão”, esclareceu o comunicado do município, que contava com a atuação de quatro médicos cubanos.
Orocó
Assim como em outras cidades brasileiras, Manari precisou reorganizar a rotina na atenção básica. “Na tentativa de não deixar a população desassistida, serão ofertados, pela Unidade Mista João Paulo II, os atendimentos (todos os dias) e a entrega de receitas para medicamentos controlados (receita azul) às quartas-feiras à tarde e às sextas-feiras pela manhã.”
Também em Orocó, no São Francisco pernambucano, a aproximadamente 570 quilômetros do Recife, moradores lamentam a desassistência, que já tem provocado transtornos e indignação para quem precisa de cuidados com a saúde. “Aqui tinha uma médica cubana que era muito boa, bastante especial. Certa vez, chegou uma pessoa passando mal para ela atender. As salas estavam todas ocupadas (para consultas). Ela sentou no chão, no cimento mesmo, colocou a pessoa do lado dela e começou a conversar. Eu me lembro disso e me arrepio (emocionada). É uma cena difícil de esquecer. Ela faz muita falta porque é muito humana”, conta a moradora Raimunda Maria da Conceição, 73 anos, que vive no Assentamento Alegre, na zona rural de Orocó, ao lado de cerca de 100 famílias.
O município, que tem IDHM (0,610) médio e cerca de 13 mil habitantes, só estava com uma médica cubana, que se dividia para atender a população. Em Orocó, há seis unidades básicas de saúde. Até julho deste ano, eram seis médicos na cidade: dois brasileiros efetivos (concursados), três contratados e a cubana, que começou a trabalhar no município em dezembro de 2016. Há quatro meses, o Ministério Público Federal determinou que a cidade, e outros municípios do Sertão do Araripe e do São Francisco, assinasse um termo de ajustamento de conduta. O documento obriga médicos a trabalharem 40 horas semanais, batendo ponto eletrônico para comprovar a presença. Antes, eles tinham acordo com o município para trabalhar três dias por semana e mais um de visitas domiciliares. Diante da nova conduta, os cinco brasileiros desistiram de imediato e deixaram de comparecer aos postos de saúde, inclusive os concursados. Só permaneceu a cubana, que se desligou de Orocó na última semana.
Com a saída dela, o único hospital da cidade, o Ulisses de Novaes Bione, está sobrecarregado. Na unidade de saúde, antes de os médicos brasileiros deixarem os postos de trabalho nas unidades básicas, eram realizados de 60 a 70 atendimentos por dia. Agora, sem médicos na atenção primária, o número chega a 100. As consultas são feitas por um médico plantonista.
De Orocó, colaborou a repórter da TV Jornal Cinthia Ferreira