MARTIN LUTHER KING

Lázaro Ramos e Taís Araújo tensionam o racismo em 'O Topo da Montanha'

Baseado no texto de Katori Hall, peça mostra diálogo do reverendo Martin Luther King Jr. após seu último discurso

NATHÁLIA PEREIRA
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NATHÁLIA PEREIRA
Publicado em 28/04/2017 às 12:47
Foto: Jorge Bispo/Divulgação
Baseado no texto de Katori Hall, peça mostra diálogo do reverendo Martin Luther King Jr. após seu último discurso - FOTO: Foto: Jorge Bispo/Divulgação
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Lázaro Ramos sentia verdadeira aversão em fazer encontrar no palco duas das atividades pelas quais é muito bem criticado há anos. Ator e diretor de teatro, ele recebeu a intimação final de Taís Araújo, companheira de vida e profissão, para adaptar ao Brasil contemporâneo texto inspirado em contexto e personagens passados. Em O Topo da Montanha, peça que apresentam sábado (29), no Teatro Guararapes, os dois intercalam drama e comédia para contar, a partir da criação da escritora americana Ketori Hall, as últimas 24h de vida de Martin Luther King Jr.

Tomando como referência o título do último discurso proferido pelo ativista político, em abril de 1968, o texto de Hall na verdade supõe o que poderia ter acontecido logo após ele, num encontro entre o reverendo e a camareira Camae (Taís), colocada como símbolo de contestação não só do homem que era Luther King, encarnado por Lázaro, mas dos papeis sociais, como os até então identificados como masculinos e femininos. Tudo isso funciona como artefato para problematizar os eixos centrais da militância do pastor, um dos maiores repudiadores da segregação racial norte-americana.

Lázaro e Taís compraram os direitos de O Topo da Montanha dois anos antes da estreia da montagem, sendo a primeira impressão a de que a linguagem soava americanizada para além do limite que permitisse desenvolvimento de empatia na plateia brasileira. Foi aí que entrou a tradução do diplomata Silvio Albuquerque. “Como brasileiro conhecedor da história do Luther King, Sílvio conseguiu adaptá-lo sem mudar o sentimento do original”, contou Lázaro em entrevista ao telefone para o JC. “Já no processo do ensaio, nós optamos também por não imitar o gestual, a maneira de falar. E preferimos tirar trocar alguns termos, como Estados Unidos, que virou ‘meu País’”, continua.

Lázaro detalha que as conversas com Taís durante a preparação passearam ainda pela preocupação em achar o tom certo para a comédia, ponto de partida da encenação. “A gente não sabia até onde ela deveria dominar para não desrespeitar a história. Demoramos pra encontrar esse equilíbrio, mas tivemos uma carpintaria tão boa que o texto falou por si só”. Com um histórico artístico que começa no Bando de Teatro Olodum e passa por personagens como Madame Satã, ele conta que, que ao olhar mais de perto as várias camadas de King, percebeu um grande líder que se viu diante da morte, confrontado pelo preconceito muito presente, apesar do notório impacto de seu trabalho.

“Uma outra coisa muito marcada pelo personagem da Taís é a posição da mulher na sociedade e os conflitos travados através de pensamentos radicais. Parece que foi tudo escrito especialmente para o que acontece agora, mas não, a inspiração é mesmo os anos 1960. O que é triste, porque depois de tanta luta ainda precisamos continuar enfrentando machismo, racismo, preconceito. Isso tudo dá sentido pra peça existir, mas ao mesmo tempo é lamentável ainda acontecer”.

O que a peça agrega agora, afirma, é o fato de dialogar com um lastro grande de pessoas, recebendo “um público que tem desde famílias inteiras negras até a senhora branca que vai sozinha e se emociona”, o que ele acredita ser resultado de uma dramaturgia acolhedora. “Ter mais negros na plateia é muito bom mas também é ótimo que esteja repleta de não negros dispostos a parar e pensar qual sua resposta diante das questões postas”.

O ator não acredita que viva em época propícia ao surgimento de um líder como Luther King, principalmente em relação às teorias de não violência e amor ao próximo. “Temos exemplos, direcionamentos, mas não alguém que unifique um pensamento. Por um lado isso é muito bom porque as pessoas podem se sentir potentes o suficiente pra mudar o que for necessário, mudanças pequenas e diárias, como o modo de tratar o outro”.

Como ecos da filosofia de cuidado com o próximo ele cita o geógrafo baiano Milton Santos e o dramaturgo, político e ativista paulista Abdias Nascimento. “Mais recentemente, essa abordagem se refletiu num trabalho que eu vou fazer sobre Lima Barreto”, conta. Nele, Lázaro vai interpretar textos do escritor carioca como parte de um projeto desenvolvido pela historiadora Lília Schwarcz, autora da biografia Lima Barreto, Triste Visionário. A apresentação acontecerá na abertura da 15ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), no dia 26 de Julho.

DESDOBRAMENTOS

“Tem uma coisa muito linda que acontece depois da apresentação”, ressalta Lázaro sobre as respostas recebidas em pouco mais de dois anos atuando, produzindo e dirigindo o mesmo trabalho. “Em algumas ocasiões a gente consegue bater papo, fazer debates e há sempre muita emoção quando se vai do riso ao choro num tempo curto”, prossegue. A experiência de troca porém, começa antes, com um livro deixado na porta do teatro para que a plateia compartilhe relatos. “Já enchemos um de 500 páginas e estamos providenciando o segundo”.

Com a ideia de doar o livro para um museu, o ator também finaliza um documentário sobre os quatro meses de ensaio da peça, processo quase todo filmado e que ganhou direção do cineasta baiano Thiago Gomes. Com previsão para ficar pronto dentro de duas semanas, o filme deve passar a ser exibido antes das apresentações de O Topo da Montanha.

Da parceria dupla com Taís [ambos estão no ar desde 2015 com o seriado Mister Brau] ele conta tirar mais inspiração para se encantar todos os dias, por eles e pelo trabalho. “São projetos que fizeram com que a gente se apaixonasse. A gente acredita no que tá dizendo e sente o resultado de uma forma muito concreta porque as pessoas se identificam com a verdade que está ali, seja no Mister Brau ou no teatro”.

ASSISTA A UM TRECHO DE O TOPO DA MONTANHA:

O TOPO DA MONTANHA - clipe HD 4min from Johnny Luz on Vimeo.

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