Orgia

Carella: o argentino que mergulhou na vida gay clandestina do Recife

Os diários verdadeiros da vida sexual do intelectual argentino deram origem ao livro Orgia

Bruno Albertim
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Publicado em 10/05/2017 às 8:38
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Os diários verdadeiros da vida sexual do intelectual argentino deram origem ao livro Orgia - FOTO: Reprodução
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Antes de virar teatro no Brasil, Orgia foi livro e, mais do que isso, existência. No começo dos anos 1960, o respeitadíssimo intelectual argentino Tulio Carella foi convidado pelos escritores e professores Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna para dar aulas de teatro na Universidade Federal de Pernambuco. Começava, aí, a cisão no homem: austeridade acadêmica e gozo anônimo pelas ruas do Recife, prazer e ruína. Nos intervalos da vida oficial, Carella descobria o Recife pelas frestas.

Orgia, o relançamento do diário sexual de Tulio Carella no Recife do começo dos anos 1960, em 2011, pela editora Opera Prima, depois de anos como um esgotado e cult título gay da literatura brasileira, foi o impulso para que a companhia paulista Kunyn montasse esse espetáculo hoje apresentado na cidade, como ponto de referência do grupo na investigação cênica da homossexualidade e outras sexualidades não normatizadas.

Ao deixar a esposa em Buenos Aires, tão logo saía da universidade ou das muitas sessões de teatro pelas quais gravitava a vida social do Recife nos anos 1960, Carella ia descobrir como a homossexualidade respirava nas frestas da moralidade opressivamente oficial.

 

“Carella adorava uma biblioteca pública, mas não exatamente para ler”, brinca o escritor Jommard Muniz de Britto - que diz não ter conhecido Carella. Encantado com a generosidade carnal dos negros e morenos do Recife (“A cor escura dos nordestinos me atrai como um abismo”), Carella vivia sua homossexualidade vertiginosamente. Atracava-se nos becos e, sobretudo, arenas do cais do porto.

FLÂNEUR DE CARNES

“Na atmosfera do Recife respira-se sexo puro e eu estou me intoxicando. Mas não posso perder tempo sentindo-me culpado; é preciso viver. De repente, vejo que sei muito menos acerca dos homens do que supunha”, escreveu.
Preso pela ditadura suspeito de colaborar com Cuba, ele foi obrigado a não revelar as torturas sofridas. Do contrário, a Argentina saberia do conteúdo de seus diários encontrados pelos militares. A imagem de intelectual nacional seria fraturada.

Foi Hermilo Borba Filho quem o encorajou a publicar, na forma de diários ficcionalizados, a verdade, para uma coleção de literatura erótica. Entre suores, secreções e melanina descritos com a voragem de um flanêur de carnes, o autor encontra fôlego também para comentar a eleição de Miguel Arraes para prefeito do Recife ou a construção de Brasília.

Escreve ora em primeira, ora em terceira pessoa, pontuando os capítulos com a pergunta: “O que é um negro?”. Não faltou quem visse na odisseia orgiástica de Carella um projeto etnográfico. Como entender intimamente os negros do Recife se não vivendo a sexualidade generosa com eles descoberta?

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