SÃO PAULO - A obra do Teatro Kunyn (SP) é tecida por confissões. Falar daquilo que transpassa, tornar o particular algo coletivo – mesmo que ainda tão pessoal – e trazer a público feridas, sejam elas do indivíduo ou da sociedade, através de um processo ressignificante cujo cerne está nas palavras que transbordam. Apresentado de hoje até sexta no Recife, dentro da programação do Trema! Festival, Orgia – ou de Como os Corpos Podem Substituir as Ideias, segundo trabalho do grupo criado em 2010, lança um mergulho sensorial e afetivo nos diários do argentino Tulio Carella, que viveu no Recife de 1960 a 1962.
Carella se mudou para o Brasil para dar aula de cenografia no então curso de Teatro da Universidade Federal de Pernambuco. Deixou no seu país de origem a esposa e uma vida social construída para se aventurar não só profissionalmente como pessoalmente.
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RUAS E PARQUES
Nas ruas e parques da capital pernambucana, paquerou, transou e se entregou aos encantos das peles morenas e suadas – como recorrentemente as adjetivou. Ele se permitiu aos desejos e paixões nas relações homoafetivas, relatados em uma poesia que une erotismo, aflição e desabafo.
O Kunyn se apropriou desses relatos para construir a peça. Dirigido por Luiz Fernando Marques, o espetáculo é dividido em três partes. Na primeira delas, os atores Luiz Gustavo Jahjah, Paulo Arcuri e Ronaldo Serruya, recebem o público contando de suas vidas e apresentando, ao mesmo tempo, três vozes de um mesmo narrador.
Em seguida, após a despedida do argentino de sua esposa e a partida para o Recife, o público se divide em três grupos – cada um sob a liderança de um dos três atores – e parte pela imersão no parque da vida de Carella (no Recife, a peça começa no Espaço Pasárgada e segue para o Parque 13 de Maio).
Utilizando fones de ouvido, a plateia acompanha os atores escutando trechos do diário do forasteiro. Nos relatos, ele expõe seus sentimentos de culpa e prazer, seus medos, seus encantos, os perigos e as “loucuras” que viveu pelo Centro recifense. O jogo do real versus ficção ganha contornos mais elaborados pela instigante opção do diretor de “cochichar” os relatos ao pé do ouvido da plateia. O segredo, pela indiscrição dos fatos, constrange e desconcerta quem os ouve, somando-se a isso elementos-surpresa da encenação.
Orgia é a segunda peça que o Kunyn apresenta no Recife. Em 2012, o grupo encenou no primeiro Trema! Dizer e Não Pedir Segredo, na qual a temática da homossexualidade era abordada de maneira intimista, nos quartos e salas de casas e apartamento.
Com o debate ecoa mais alto. O olhar recai sobre um contexto público: o preconceito que está nas ruas; as buscas escondidas nas frechas. A peça evidencia o debate sobre utopia e distopia, que norteia a temática do festival deste ano, fazendo refletir sobre as regras e repressões do estado distópico que colocam Tulio Carella a criar suas fugas e satisfações em simulacros de utopia, ainda que às escondidas.
Orgia – Ou de Como os Corpos Podem Substituir as Ideias – de hoje a sexta, 14h30, no Espaço Pasárgada (Rua da União, 263, Boa Vista). Ingressos: R$ 20 e R$ 10 (meia). Informações: www.tremafestival.com.br