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Pernambuco Modernista: Tereza Costa Rêgo, uma mulher e sua pintura

A mulher que viveu toda a intensidade do século 20 ajudou a construir uma modernidade pintada com a história e a própria saliva

Bruno Abertim
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Bruno Abertim
Publicado em 28/03/2017 às 15:25
Sérgio Bernardo/JC Imagem
Tereza viveu toda a intensidade do século 20 ajudou a construir uma modernidade pintada com a história e a própria saliva - FOTO: Sérgio Bernardo/JC Imagem
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Terezinha Barros Costa Rêgo, filha de uma clássica família da já cambaleante aristocracia pernambucana do açúcar, nasceu em abril de 1929. Tereza Costa Rêgo, maior nome feminino de uma pintura moderna em Pernambuco, só viria ao mundo em novembro de 1975. Diante do amor subitamente morto, decidiu: renasceria, definitivamente, como a artista plena que ainda não conseguira ser. “Ali, com ele enfartado diante de mim, enxuguei as lágrimas e resolvi. Chega. Chega de ser a filha do engenho, a bisneta do Conde da Boa Vista, a ex-esposa do juiz, a mulher do líder político. Ali, eu decidi. Seria apenas eu, uma mulher e sua pintura.”

A pintora havia sido premiada, ainda moça, no Salão dos Novos do Museu do Estado de Pernambuco. Em 1949, Menina e Ex-votos, uma composição escura na qual uma senhorinha parece se esconder do peso da sociedade patriarcal em algum lugar da própria personalidade, lhe rendera uma viagem a Paris - na companhia, aliás, do amigo Dom Helder Câmara. Em 1962, já com três prêmios do Museu do Estado e um da Sociedade de Arte Moderna do Recife, teve sua primeira grande individual - assinava ainda as obras com o singelo nome Terezinha de sua certidão de batismo. Sua pintura, contudo, era não mais que diletante. O acaso, se ele existe, lhe reescreveu o roteiro.

Logo após a anistia concedida pela Ditadura Militar, Tereza se preparava para abandonar o nome falso de Joanna dos quase dez anos de exílio político vividos, sobretudo, em Paris. Voltaria a viver no Brasil com o companheiro Diógenes de Arruda Câmara, homem de referência e grande trânsito na então esquerda internacional de um mundo dividido pela Guerra Fria. Em São Paulo, Diógenes não aguentou a emoção de receber João Amazonas, recém-chegado do exílio. Enfartou em pleno trânsito, a caminho de uma homenagem prevista para o amigo no Sindicato dos Metalúrgicos. A sós, no necrotério, Tereza comunicava tanto ao grande amor silenciado quanto a si: sua pintura não seria mais ocasional. Passaria a ser sua vida.

LUTO E ARTE

Com o nome de Tereza, levou seu luto para Olinda, perto de onde estavam as filhas e onde uma animada comunidade de artistas começava a ocupar os velhos casarões. “O Recife está em toda a minha obra, mas gosto de dizer que sou uma filha de Olinda. Porque, aqui, de fato, me fiz artista.” Ao começar a manipular os pincéis na casa da Rua do Amparo onde vive, a artista, no entanto, ressuscitou lições de velhos mestres - dela e do Modernismo Pernambucano.

Depois dos primeiros contatos com tintas ainda, sinhá pequena que fora, com as freiras do colégio interno, Terezinha foi matriculada, aos 15 anos, na Escola de Belas Artes do Recife. “Desde que não assistisse às aulas de modelo nu. Fui criada numa família muito tradicional judaico-cristã em que tudo era pecado.” Bastava, contudo, a família dar as costas para a aluna se mandar de lápis na mão para a sala onde os despidos se exibiam para as pranchetas. “O professor logo ficou meu amigo”, ela ri.

Mais do que estudar anatomia para as artes, Tereza começava a entender que a arte mudara. Precisava expressar urgências e dicotomias do mundo moderno. A arte, como o mundo, ficara moderna. “Eu tinha uma família fechada, tinha poucas relações. Na Escola de Belas Artes, comecei a ter amizade com Brennand, com Aloísio Magalhães, Reynaldo Fonseca… e com meus professores Vicente do Rêgo Monteiro e Lula Cardoso Ayres.”

A jovem educada plasticamente com o ímpeto ainda recatado de romper os cânones acadêmicos discursava pictoricamente sobre meninas-moças sufocadas pelo ecossistema patriarcal em que a artista se esforçava para respirar. Antes de se tornar a enviuvada assumindo regência na própria vida, bem antes, Tereza já tinha encontrado com os mestres a matriz da gramática com a qual vestiria sua longa comunidade de personagens. “Quando Lula e Vicente entraram na Escola de Belas Artes, de certa forma, mudaram as regras de composição antigas. Eu tinha aprendido a desenhar e a pintar de uma forma bem acadêmica.”

Com os professores, caíam regras herdadas do Renascimento como a obrigatoriedade de haver um centro de atenção no quadro ou de se evitar a condução do olhar para fora da tela. Antes considerados erros, tabus como a duplicação de formas eram não apenas admitidos como desejados. Ela era incentivada a abandonar dogmas como a regra de dividir o quadro em terços e alocar o objeto principal numa das intersecções para garantir um enquadramento mais harmonioso. “Quando a gente saía um pouco da regra três, eles aplaudiam. Eu fiz a figura de um menino irregular e Vicente disse: ‘Isso é muito melhor do que tudo o que você já fez antes’”, lembra. “Vicente e Lula foram os professores que mais me influenciaram. Então, comecei a fazer algumas deformações e a me soltar, isso me fazia muito bem”.

Enquanto fala, no sofá de casa, Tereza tem atrás de si uma mulher angulosa, ligeiramente geometrizada. A figura tem uma perna desproporcional como se saltasse do quadro. No centro do quadro e da própria mulher está, afirmativa, a vulva da personagem. Foi o primeiro nu pintado por Tereza. Mulher Nua com Gatos(1981) seria o marco inaugural de uma série de fêmeas despidas com morada na obra de Tereza. Influenciada também por Matisse, Tereza compõe uma mulher nua monumentalmente desproporcional.

“Antes, essa mulher não seria possível. Seu joelho e pernas imensamente agigantados seriam considerados uma aberração. Seu pescoço, outra. De alguma forma, aquela mulher é uma aberração como eu fui considerada em algumas vezes na vida.” Tereza, a partir dali, constrói uma longa comunidade de mulheres ostentando uma desafiadora autonomia sexual. “A pintura de Tereza é também a da libertação da mulher”, indica o crítico Marcus Lontra. “Tereza é essa mulher do domínio do corpo, da liberdade. Não é mais a fêmea submissa, mas a do orgasmo conquistado.”

Antes e durante a criação de suas fêmeas despidas, um rosário de meninas-moças acuadas povoam suas telas. Contornos femininos confundem-se, em sua poética, com a silhueta de Olinda, a cidade-fêmea. “Eu sou muito tátil. Eu não penso Olinda, eu aliso Olinda”, ela diz. Se tórrida pelas cores saturadas com o vermelho afirmativo como ícone, ou uma resposta-manifesto aos padrões morais da sociedade açucareira, a pintura de Tereza é, portanto, inscrita: universal porque regional - e o discurso da identidade circunscrita é um dos esteios do Modernismo Pernambucano. “A tensão entre o regional e o mais universal perpassa sua obra”, percebe Lontra, sobre a pintora que, aos 87 anos, segue pintando com a saliva. “A saliva dá uma textura que não se consegue de outra forma. Quando começo a pintar, quando menos espero, estou com o pincel na boca. E é perigoso, porque posso me envenenar né?”.

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