Uma vez entregue aos espectadores, o que, no Brasil, ocorrerá nesta quinta-feira (21), o filme Mãe!, de Darren Aronofsky, dará margem a diversas interpretações. E esta que aqui segue é apenas mais uma delas. É ponto pacífico que se trata de um drama psicológico, um terror psicológico ou a nova definição para o gênero: um pós-terror. A partir daí a audiência é convidada a se sentar diante de uma obra aberta para ruminá-la aos poucos, dela se distanciando, dando-lhe tempo para que suas camadas se sedimentem e encontrem correspondências internas que permitam sua interpretação e fruição. Aronofsky nos brindou com uma obra de arte contemporânea, uma performance que usa o cinema como suporte.
Eu diria que Mãe! é, sobretudo, uma narrativa sobre a construção da pisque – os processos psíquicos que podem ser conscientes ou inconscientes segundo Jung ou, de acordo com Freud, a maneira como operamos neste mundo através do id (parte inconsciente), ego (parte consciente) e superego (a superconsciência que nos ajusta para o aceitável socialmente, às vezes em oposição àquilo que é desejado pelo ego e pressionado pelo id).
O maior suporte dessa hipótese é a casa, espaço único onde se desenvolve toda a ação. Quando repartimos a edificação em porão, ambiente de convivência principal e sótão vemos os compartimentos da pisque simbolizados. Uma casa que aparece repetidas vezes em sonhos pode indicar que estamos lidando com questões relacionadas às esferas da mente.
O comportamento humano tem sido assunto recorrente na obra deste diretor nascido em 1969, no Brooklyn, Nova Iorque. Já vimos a sua lente se debruçar sobre o desvio da normalidade imposto pelas drogas (lícitas ou ilícitas) em Réquiem Para um Sonho (2000); como condição patológica na bailarina de Cisne Negro (2010); como elemento de genialidade matemática que permite alguém enxergar o que ninguém mais consegue ver, em Pi (1998); como conduta messiânica que não encontra bases em informações tangíveis, mas puramente na fé, como em Noé (2014). Em Cisne Negro, a luta da bailarina era para não perder sua identidade; em Mãe! Essa batalha gira em torno da territorialidade, um espaço igualmente sagrado.
Em Mãe!, a frágil estrutura de normalidade, representada por uma casa localizada numa área isolada e idílica, está em permanente construção e desconstrução. O casal que nela habita não é nominado. O marido, Javier Bardem, é um poeta em bloqueio de criatividade que, sem conseguir esboçar mais um verso sequer, é instado pela esposa, Jennifer Lawrence a não desistir, a continuar tentando dar vazão ao que vem de dentro. Ela às vezes é chamada por ele de “deusa”, noutras vezes tão somente de “inspiração, sempre apontada como “salvadora”. Neste lar, vemos um casal em descompasso, como se razão e emoção não mais se comunicassem entre si.
Assim retratam os dois cartazes desenhados para transmitir o núcleo central da mensagem contida no filme. Numa versão temos Jennifer de mão estendida ofertando seu próprio coração; noutra está Javier Bardem, também de mão estendida, mas vazia, como se esperando receber algo. Em resumo: nem o pedir/exigir pode se tornar arrogante, nem o ofertar pode ser ilimitado.
E é justamente porque a primeira meia hora de filme nos induz à aceitação da “normalidade”, dentro daquela estrutura de crise conjugal, que somos pegos desprevenidos quando no tempo restante ele segue num crescendo de nonsense e enigmas, como um pesadelo do qual a gente acorda para, em seguida, cair de novo no sono e continuar sonhando. Paradoxalmente, é quando a obra de Aronofsky ascende em seu caráter metafórico que o espectador mais se aferra a uma normalidade, ou realismo, que não mais está lá.
RUPTURA
O ponto de ruptura se dá com a chegada de um estranho (Ed Harris), que trará no seu rastro outros ainda mais estranhos: a esposa que diz o que lhe vem à cabeça (Michelle Pfeiffer), seus filhos descontrolados e uma sucessão de acontecimentos que se desdobram a partir desses encontros inusitados.
Como nosso superego, Jennifer Lawrence, a quem a câmera segue como um cachorrinho curioso, tenta dar ordem ao caos que começa a se insinuar. Desde o início, aliás, fica claro que esta é a tarefa que lhe pertence com exclusividade. A casa onde mora com o marido havia, no passado, sido queimada quase até a fundação, e ela, sozinha, no papel de pedreiro, marceneiro, encanador e eletricista, trata de pô-la de pé, fazendo-a novamente habitável. Ela, a mãe, a deusa, a inspiração, conhece o funcionamento daquela estrutura, a partir do seu interior, como ninguém mais.
Javier Bardem, o Ele/Ego, por outro lado, convive na casa como se ninguém mais importasse, pontuando suas necessidades, lamuriando a perda de privilégios, convidando situações sem questionar se elas são inofensivas, como de fato acredita, ou catalisadoras de grande catástrofe. É a sua vontade que impera: o desejo de ser afagado, a autogratificação em detrimento das consequências.
O Ego/Bardem se aferra a pequenas posses, como um cristal que resultou da combustão da antiga casa e que ele guarda como uma relíquia preciosa da pessoa que ele foi (e do que ele teve) no passado. Jennifer/o superego zela por ele até não mais ser possível e tenta retomar o poder, para restabelecer a ordem. E usará, para isso, os meios necessários, inclusive a destruição. A batalha final é travada no porão, o inconsciente, para onde toda a loucura, toda ausência de normalidade, ainda não passou por uma reforma e fica apenas oculta aos olhos dos convidados. Amar, muitas vezes, significa apenas ter coragem de botar a casa abaixo para só assim poder recomeçar.
*A jornalista viajou a convite da Paramount Pictures