Até hoje, questões envolvendo saúde mental permanecem envoltas em mistificação e silenciamento. Uma das consequências mais graves da falta de acompanhamento e tratamento dessas disfunções é o suicídio. Apesar da gravidade, o assunto permanece como um dos mais fortes tabus na maioria das sociedades. Eventos recentes, no entanto, tornaram o debate inevitável. A pauta ganhou força, principalmente, devido à série 13 Reasons Why (Os 13 Porquês, em português), disponibilizada na Netflix. A obra aborda a decisão de uma jovem de tirar a própria vida, não sem antes gravar treze fitas cassetes explicando os motivos que a levaram a tanto – ou melhor, apontando as pessoas que julga serem responsáveis por sua decisão. Elogiada por levar para o grande público temas necessários como bullying e machismo, a série também vem enfrentando críticas por supostamente promover a glamourização do suicídio, o que tem preocupado profissionais da saúde.
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Baseada em um livro homônimo escrito por Jay Asher, a série é ambientada em no ensino médio e seus personagens são adolescentes. Período de intensas transformações para o indivíduo, tanto físicas quanto psicológicas, a adolescência é retratada na produção de forma complexa. As situações às quais Hannah é exposta, como bullying, abuso e isolamento, são compartilhadas por outros jovens fora das telas.
Apesar de não tratar os personagens de forma plana, como tantas obras do gênero costumam fazer, a série toma decisões problemáticas, que serão discutidas a seguir. Para quem não assistiu aos treze episódios, alertamos que o texto a seguir contém spoilers.
Hannah e sua família chegam a uma nova cidade e, ao entrar na escola, ela se depara com o desafio da aceitação pelos novos colegas. Logo nas primeiras semanas, ela se envolve com Justin, atleta popular da instituição, que, para se gabar com os amigos, expõe uma foto íntima da garota. Começa então o processo de isolamento de Hannah que, além de lidar com a desilusão amorosa, passa a ser vítima também de chacotas e perseguição.
A dificuldade em estabelecer relações de amizade também se apresentam como um impedimento para a garota, que se mantém sempre na linha da superficialidade com Clay, jovem apaixonado por ela. A desconexão com o seu entorno, assim como a ocorrência de experiências traumáticas, como um abuso sexual, fazem com que Hannah, já com o estado emocional abalado, opte por tirar a própria vida. Antes de cometer o ato, no entanto, ela grava 13 fitas cassete endereçada a cada um dos que considera terem provocado sua atitude. Nessa decisão da jovem, há um dos principais motivos pelos quais a série vem sido objeto de críticas: a ideia de culpabilização do suicídio.
“A série fala do suicídio de uma forma romantizada. A personagem está responsabilizando aqueles que de alguma forma tiveram influência direta para o desenvolvimento do sofrimento dela. É como se ela estivesse em busca de justiça, mas não se pode trabalhar o tema desta maneira. O suicídio não é um fenômeno isolado. Está dentro de um contexto político, social, econômico. Fatores como abusos, injúrias, falta de diálogo e apoio podem exercer influência. E a própria pressão social, afinal, vivemos em uma sociedade de consumo, e não corresponder às expectativas do que se coloca como sucesso, poder de compra, angustia muito. Mais do que culpados é importante estimular o diálogo sobre o tema entre pais e filhos, a parceria entre a escola e comunidade e repensar o tipo de relações estabelecidas”, explica a psicóloga Dayse Mattos.
A professora Rosinha Barbosa, que integra com Dayse e o grupo formado por professores, profissionais e estudantes de psicologia Programa de Prevenção ao Suicídio e Promoção de Resiliência, na UFPE, ressalta ainda o crescimento no número de jovens que tentam suicídio a cada ano.
“Antes o suicídio era mais comum entre pessoas mais velhas, mas hoje se encontra em segundo lugar dentre as 10 primeiras causas de morte no mundo entre jovens de 15 a 29 anos”, pontua. “O clima de estresse, com relações virtuais ao invés de pessoais, contribue para o sentimento de isolamento e cria um ambiente onde florescem ações absurdas, como o jogo Baleia Azul, na qual a última consequência é tirar a própria vida”, reforça.
SAÚDE MENTAL
Outra crítica pertinente ao seriado é o fato do quadro mental de Hannah não ser aprofundado. Apesar de tê-la como narradora, gasta-se pouco tempo discutindo o estado emocional dela e como as ações externas afetaram seu interior. Questões como depressão não são abordadas. Clay, o outro protagonista da série, também passa por problemas psicológicos, sendo afetado com alucinações no presente e dando indicativos de que precisou de tratamento no passado (sua mãe recomenda a volta ao psiquiatra). Não há, no entanto, aprofundamento nesses temas, que são de ordem de saúde pública.
Essas questões foram ressaltadas pelo crítico Pablo Vilaça, um dos primeiros a apontar os problemas da série. Em seu blog, ele ressaltou que a obra falha em tratar a depressão e o suicídio como “problemas complexos exatamente por envolverem a subjetividade do paciente/vítima – assim como são reais os traumas que o autoextermínio provoca em quem ficou para trás e que não tem necessariamente a ver com responsabilidade”.
Além de conter vários gatilhos (reações psicológicas decorrentes de associação de situações do presente com traumas passados), 0s criadores da série optaram por mostrar a cena do suicídio de Hannah. Ao retratar de forma gráfica a morte da jovem, a série vai de encontro às recomendações da Organização Mundial da Saúde. Segundo Dayse Mattos, os episódios podem ter feito danoso, pois se dirigem a jovens que podem querer reproduzir determinadas situações em função de seu próprio sofrimento, a exemplo do Efeito Werther (ver vinculada). A preocupação aumenta levando-se em consideração a popularidade da série: segundo o Huffington Post, ela é a mais popular já produzida pela Netflix, angariando mais de 3,5 milhões de menções online (o serviço de streaming atualmente está disponível em mais de 130 países e tem 100 milhões de assinantes, mas não divulga informações exatas de audiência).
“Mostrar a cena do suicídio é nocivo. À medida em que você expõe o fato, pessoas que já estão munidas de sofrimento, passando por essa angústia, sem ver alternativas, podem ser incentivadas a cometerem o ato, em um ato de espelhamento. Em geral, há um pedido de socorro dessa pessoa que está em sofrimento. Normalmente o suicídio acontece depois de outras tentativas. Então, retratar essa situação, ainda mais em um contexto em que ela está buscando justiça, pode ter consequências ruins. É preciso reforçar a importância da prevenção e estimular o debate sobre a saúde mental. É importante refletir o quanto a morte dessas pessoas nos trazem elementos sobre a vida", reforça Dayse.
OS PERSONAGENS DE 13 REASONS WHY
Hannah Baker (Katherine Langford) – Personagem central da trama, antes de cometer suicídio, a jovem grava fitas para cada um daqueles que julga serem culpados por sua decisão. Entre os traumas que enfrenta estão violência sexual e bullying, que desencadeiam um processo depressivo.
Clay Jensen (Dylan Minette) – Apaixonado por Hannah, passa grande parte da trama atormentado em busca da razão por pertencer às fitas deixadas por ela. Emocionalmente frágil, chega a sofrer alucinações em decorrência do estresse desencadeado desde a morte da amada.
Jessica Davis (Alisha Boe) – Primeira amiga de Hannah na nova escola, se afasta da jovem e passa a circular por outros ciclos, iniciando namoro com Justin, pivô da primeira grande crise Hannah. Após uma experiência traumática envolvendo estupro, inicia vício em álcool.
Justin Foley (Brandon Flynn) – Um dos garotos mais populares da escola, o atleta divulga foto íntima de Hannah e se torna uma espécie de algoz da garota. Sua vida familiar, afetada pelos relacionamentos abusivos de sua mãe, também é abordada na série. Um episódio envolvendo sua incapacidade de defender a namorada, marca-o profundamente.
Alex Standall (Miles Heizer) – Junto à Hannah e Jessica, que posteriormente se torna sua namorada por um breve período de tempo, forma o “Trio Monet” (em referência ao café onde costumam se reunir). Seu pai, um policial machista e repressor, vê na violência uma forma de legitimação do filho.
Tony Padilla (Christian Navarro) – Responsável por guardar as fitas de Hannah após o suicídio, atua como uma espécie de mentor de Clay, buscando auxiliar o rapaz durante o processo de escuta das cassetes.
Olivia Baker (Kate Walsh) – Mãe de Hannah, vive o luto da morte da filha ao mesmo tempo em que busca justiça. Ela acredita que a negligência da escola em perceber o bullying e a situação de vulnerabilidade vividos pela garota impulsionaram a decisão trágica.
Bryce Walker (Justin Prentice) – Proveniente de uma família rica, é machista e comete o mesmo crime em relação a duas personagens. Suas atitudes são consideradas cruciais para a decisão de Hannah.