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Criar um personagem é de certa forma submeter-se a uma doença. É preciso primeiro se deixar contaminar, contrair para si mesmo a voz de outra pessoa. Escrever, então, é quase o processo de se tornar o personagem, é chegar ao ponto de até sonhar os pesadelos que ele teria, de acordar no meio da noite confuso, sem saber que inconsciente criou aquilo tudo. Foi isso que o escritor e dramaturgo cearense radicado em Pernambuco Ronaldo Correia de Brito viveu ao fazer o seu novo romance Estive lá fora (Alfaguara, 295 páginas, R$ 45), narrativa que recria o ambiente sombrio da ditadura que o escritor encontrou quando veio ao Recife.
Autor do consagrado Galileia, que ganhou em 2009 o Prêmio São Paulo de Literatura, Ronaldo chegou a ficar doente – clinicamente doente – quando terminou o livro. Escrever Estive lá fora foi viver o ambiente sombrio da história, o relato de Cirilo, personagem principal, um estudante de Medicina que veio do interior do Ceará para o Recife. Aqui, ele convive com o fantasma do irmão, o militante radical de esquerda Geraldo, na iminência de ser levado pela ditadura, enquanto vive o conflito de ver autoritarismo tanto no regime militar como no stalinismo de seu irmão. Num Recife angustiante, que não oferece saída prática ou teórica para esse dualismo cruel, ele ainda precisa acalmar os pais no Ceará, que se preocupam com o paradeiro do outro filho revolucionário.
Ronaldo estudou Medicina no Recife e viveu esses anos de ferro. Ele não é Cirilo, personagem narrador de Estive lá fora, mas também não deixa de ser. Não teve um irmão que estava na iminência de cair nos braços da ditadura, vivendo o terror de ser sequestrado ou morto pelo estado, mas ao mesmo tempo, teve esse irmão de outras formas: seus amigos, os filhos e parentes de outros, estavam guardados nos porões da ditadura e eles lhe suscitavam as mesmas questões. “Cirilo está muito impregnado do meu desejo e da minha voz. Ele é tudo que eu não fui, é cheio de mulheres, bonito e muito doido – bebe e fuma até maconha”, explica Ronaldo. “É uma antítese minha, mas com a minha alma, as minhas pulsões e a minha memória”.
O autor cearense criou Estive lá fora em 18 meses ininterruptos de escrita. “Certo dia, cheguei a passar 16 horas escrevendo”, revela Ronaldo, que durante esse tempo ainda parou completamente com as viagens e participações em eventos para se concentrar apenas na obra. “Foi um momento de muita entrega. Eu estive muito perto desse mundo de Cirilo, eu precisei mexer nesse meu passado”.
Não foi fácil, segundo ele, lidar ao mesmo tempo com as memórias (sempre elas, como também acontece em Galileia) tristes de seus primeiros contatos com a capital pernambucana e também a relação obsessiva que desenvolveu com o personagem principal. “Em certo momento, é como se o personagem realmente dominasse o narrador. Tem um capítulo em que ele simplesmente narra em primeira pessoa. Os recursos de escrita – cartas e sonhos – foram impostos pelo próprio Cirilo, apesar de funcionarem bem tecnicamente”, aponta o escritor.
Para fazer Estive lá fora, Ronaldo se submeteu ao isolamento de um paciente em tratamento e foi acometido dos sonhos e da voz do personagem, como se sofresse as alucinações de uma forte febre literária. Paciente e médico da própria narrativa, o escritor terminou por desenvolver uma espécie de síndrome de Estocolmo em relação ao romance. A empatia que sentiu pela angústia de Cirilo o queria impedir de publicar a obra tão rapidamente, poucos meses depois de finalizada.
“Eu de fato tenho muita dificuldade de entregar meus originais”, conta Ronaldo, lembrando que dois dos seus primeiros contos passaram mais de 30 anos esperando para serem publicados. Embora o projeto de Estive lá fora fosse antigo, foi o livro que levou menos tempo para ser publicado. Ronaldo chegou a enviar e-mail dizendo ao seu editor, Marcelo Ferroni, 22 motivos para que a obra não saísse, mas foi cuidadosamente demovido da ideia.
Leia a matéria completa no Jornal do Commercio deste domingo (9/9)