O romance Fernanflor é, puramente, um personagem – e, como todo bom personagem, também termina sendo, de alguma forma, pura narrativa. Na obra, Sidney Rocha carrega o leitor para a vida-turbilhão do pintor Jeroni Fernanflor, um homem de talento, obsessão, estética e vaidade, um “sonho de uma nuvem” para sua mãe, um artista invejável para os outros. Alguém que nasceu na “ilha das verdades excessivas”, condenado a ser o que se tornaria – sua vida, como a de muitos, está sempre tateando alguma coisa dentro da máxima de Nietzsche, que diz para nos tornamos quem somos.
Em certa medida, o livro é uma obra restrita a um personagem: não há quase nada nele que não seja parte da vida e de seus pensamentos mais íntimos. No entanto, ao contrário de um mundo imerso no mundo, temos um mundo todo que cabe dentro de um personagem, como se o desafio da obra fosse deixar o leitor tentando resistir de qualquer jeito à contaminação da subjetividade de Jeroni.
Fernanflor é um romance de personagem e de linguagem – Sidney parece vender mais caro do que nunca as imagens, usando-as com frequência, mas buscando sempre evitar o que já tem atalhos. O pintor transcorre décadas, passa por geografias distintas e acontecimentos que podem até não fazer sentido cronologicamente, encontra personagens históricos. Como diz um pedaço da narrativa: é fundamental para Jeroni um termo imortalizado por Guimarães Rosa: a travessia.
São dois vislumbres importante que o romance oferece. O primeiro fala sobre a obsessão do artista de reinventar o mundo e os rostos, de descobrir como é o mundo além do truque que é a aparência. Jeroni é um personagem que coloca a arte e a estética na frente de tudo; eis a força de seu caráter e seu maior defeito. Sua arte é avassaladora para os outros e para si mesmo: é o que lhe dá glórias, mas também aquilo que gera sua solidão.
Outro ponto é a vaidade, um veneno que desde cedo chega nas veias de Jeroni. “Cada dia sem alcançar o topo da montanha é de martírio e fracasso, e se incomoda ao sentir manchado pela inveja ou pela raiva, igual aos homens comuns, nos domingos do parque”, sente o personagem em sua formação artística, em Bressol. O questionamento sobre a vida de Jeroni é feito pelo próprio livro, que incorpora, com ironia, duas vozes que dialogam sobre o que ocorre o tempo todo.
Ao fazer um romance simples, de quase um só personagem, Sidney não optou pelos caminhos curtos: Fernanflor é um livro sobre a paixão, em sua força e toxicidade. “Era fantasma perseguido por fantasma”, descreve um momento da obra. É que o leitor talvez seja o fantasma desse trecho, alguém que está sempre seguindo Jeroni para tentar entender um pouco mais de sua vida e de suas pinturas, que geram retratos que nunca são mostrados, mas que são, paradoxalmente, difíceis de esquecer.