Leituras recomendadas por professores nem sempre são bem-vindas por alunos. Pelo menos quando ainda no colégio, principalmente às vésperas do Vestibular. Na universidade, no entanto, as coisas mudam um pouco de figura. Em todo caso, numa leitura "por obrigação" pode surgir alguns "alumbramentos". Foi o que ocorreu com Juliana Cunha, ao ler Os Vestígios do Dia, de Kazuo Ishiguro, adaptada para o cinema por James Ivory. O impacto da obra foi tão forte que a jornalista, baiana de Salvador, 29 anos, resolveu estudá-lo no Mestrado em Teoria Literária na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Universidade de São Paulo (USP). Não imaginava ela que o autor nipo-britânico, tão pouco lido no Brasil, ganharia esta semana o Prêmio Nobel de Literatura.
Entrevista/ Juliana Cunha
Como você conheceu a obra de Kazuo Ishiguro e o que te seduziu na obra dele?
Eu li "Os Vestígios do Dia" na graduação, na USP, em uma matéria da professora Sandra Guardini Vasconcelos, e fiquei muito impactada pelo livro. Em seguida li Não Me Abandone Jamais (também lançada no Brasil) e daí em diante já estava ganha para o Ishiguro e para a forma como ele cria um desespero calmo no leitor.
O que te levou a estudar Kazuo Ishiguro e qual o recorte/abordagem que você está fazendo da obra dele?
Eu estudei o J.D. Salinger na graduação, com o professor Edu Otsuka, da Teoria Literária. Não sabia se queria continuar com o mesmo autor, embora tivesse algumas ideias para trabalhar com ele. Na verdade, queria pegar um autor brasileiro, mas não é tão simples porque não se trata só de uma questão de querer ou de gostar de um autor, é preciso pelo menos achar que se tem algo razoavelmente original a dizer sobre ele. Eu achava que tinha algumas coisas sobre o Ishiguro e quase ninguém havia estudado ele aqui no Brasil, então, pensei que podia ser útil cobrir esse vácuo e o professor Otsuka topou me orientar.
O meu trabalho é uma análise de Os Vestígios do Dia. Em linhas gerais, eu tento falar de como a escolha do mordomo é muito feliz para narrar um mundo em desajuste. O romance se passa no pós-guerra. Temos esse mordomo inglês superapegado às tradições e que passou a vida servindo a um lorde. Acontece que o lorde se envolveu com nazistas, caiu em desgraça, morreu e agora a casa pertence a um americano que enxerga aquilo tudo como fetiche. A casa, o mordomo, as tradições, nada daquilo faz sentido genuíno para ele, é só fetiche, capricho, ostentação.
Mesmo na época do lorde, a situação do Stevens, o narrador, já era precária: ele queria viver em um mundo em ruínas, sob valores em decadência. Mas o fato de ter ali uma das poucas casas de campo remanescentes e um nobre que ele acreditava ter ideais nobres segurava as pontas, já era uma tentativa de achar na nova ordem do mundo um espacinho para a velha ordem. Agora, no entanto, azedou de vez. Os ideais do nobre eram abomináveis, o novo patrão nem ideal tem, não é nobre nem no sangue nem na postura. O mordomo é o sujeito responsável por manter a ordem, por colocar tudo em seu devido lugar. Agora que tudo saiu definitivamente do lugar, sobra para Stevens definir novos lugares, adaptar os valores, fazer um puxadinho de aristocracia. E é isso que ele vai tentar fazer.
É correto ver na obra dele traços de Kafka e Proust?
Falam em Proust por conta da recorrência na temática da memória e em Kafka por conta de algumas representações do fantástico. Eu não sei bem. Em Kafka os personagens parecem ser jogados em situações bizarras que fogem à sua própria normalidade e que eles reconhecem como anômalas, se desesperam com isso. Em Ishiguro os personagens geralmente são nativos daquela anormalidade e desesperam o leitor justamente por sua aparente incapacidade de se desesperar. A percepção do absurdo está no leitor, não no personagem. Isso quando ele não consegue envolver o leitor de tal forma que mesmo a gente por vezes perde essa noção.
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Já em relação a Proust, me parece um narrador muito mais honesto consigo mesmo e com seu leitor, alguém que está se lançando ao passado com curiosidade genuína. É um narrador que investiga um passado que lhe é muito fugidio por conta da sobreposição de memórias, da precariedade dessas memórias, e com isso tenta montar um quebra-cabeças. No caso de Ishiguro, é mais comum que os personagens busquem racionalizar o passado e criar uma narrativa com a qual eles possam dormir. A memória também é fugidia, também se sobrepõe, mas os narradores estão mais ocupados em se utilizar dessa precariedade para traçar sua versão alternativa dos fatos do que em realmente investigar o passado e montar o quebra-cabeças.
Sua obra está mais para o estilo britânico/europeu do que para o japonês/oriental? Como ele opera dentro desses universos?
É um estilo muito fincado na tradição ocidental, fortemente baseado em enredo, em personagens individualizadas e tridimensionais. Mesmo as características que alguns podem enxergar como nipônicas me parecem também britânicas: o comedimento, o autocontrole, a polidez usada como subterfúgio.
Ishiguro era, pra você, um escritor azarão na corrida do Nobel? Por quê?
Não entendo bem a lógica da academia sueca, mas acho que ninguém esperava por isso. Eu pelo menos não esperava, e o Ishiguro disse que se tivesse a mais remota esperança disso acontecer teria lavado o cabelo naquela manhã. Se a gente pensar direitinho, quase dá para traçar um paralelo com a escolha anterior: no ano passado foi Bob Dylan, esse cantor que queria ser escritor. Esse ano foi Ishiguro, que na verdade queria ter sido rockstar. (Estou brincando, é claro).