Poucos escritores levaram tão a sério o ofício da poesia em Pernambuco quanto Marcus Accioly, que faleceu vítima de um infarto fulminante no último sábado, aos 74 anos, em seu refúgio na Ilha de Itamaracá. Rigoroso na feitura de seus versos e ambicioso no seu projeto literário, deixa uma obra consistente, mas infelizmente pouco difundida e lida, principalmente nos últimos anos - ele deixou uma dezena de livros inéditos. Sua poesia buscava a oralidade dos repentistas, com grande apreço às rimas e as formas fixas, notadamente o decassílabo, em seus cantos, maneira como se referia aos seus poemas.
Ocupante da cadeira 19 da Academia Pernambucana de Letras, sucedendo a João Cabral de Melo Neto, Marcus Accioly era uma das principais vozes poéticas da Geração 65, ao lado de Jaci Bezerra e Alberto da Cunha Melo, e foi integrante do Movimento Armorial. Era membro emérito e presidente do Conselho Estadual de Cultura e foi secretário executivo do Ministério da Cultura no governo de Itamar Franco, na gestão de Antonio Houaiss.
Após um velório no cemitério Morada da Paz, em Paulista, seu corpo foi enterrado ontem no cemitério de Aliança, município onde nasceu em 21 de janeiro de 1943. Uma enorme participação popular marcou o enterro de Accioly, autor do hino da cidade . Durante o enterro, políticos como o prefeito de Aliança, vereadores e o secretário de Cultura de Pernambuco, Marcelino Granja, estiveram presentes.
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“A morte de Marcos nos tomou a todos de surpresa, porque nós conversamos por telefone na sexta feira, por muito tempo, programando eventos para a APL para o ano de 2018. O falecimento dele é uma perda para a APL e uma grande perda para a poesia pernambucana, sobretudo porque ele tomava muitos temas regionais, nordestinos, imortalizando situações da nossa terra, da nossa gente”. Representando a APL, além da presidente, estavam também José Mario, Reinaldo Oliveira e Ângelo Monteiro.
Em seus textos publicados no Jornal do Commercio na página de Opinião, Marcus Accioly com certa frequência evocava a infância no Engenho Laureano, onde nasceu, no Município de Aliança, na Mata Norte pernambucana – a paisagem verde do canavial, as árvores e aves das matas, as brincadeiras de menino, os banhos de rio, a observação dos tipos humanos.
Uma figura presente em seus textos era o seu pai, Japhet, a quem acompanhou até os últimos momentos de vida e que, assim como ele, se refugiava à beira-mar de Itamaracá, onde de dedicava com paixão à pescaria. O universo da infância e da família é tematizado por ele no livro Guriatã, escrito e ilustrado à maneira de cordel, onde fatos de sua vida estão presentes no poema narrado. O personagem principal é Sucram (Marcus, de traz pra frente), seu alter ego.
NORDESTINADOS
Marcus Accioly desponta na poesia retratando o Nordeste que lhe é tão próximo em Cancioneiro e Nordestinados, ambos publicados pela Imprensa Universitária (1968 e 1971, respectivamente). Neste segundo, a poesia canta o Sertão: a geografia e a cultura sertaneja (A Pedra Lavrada), os fatos heroicos (Sertão-Sertões), as maravilhas e encantos (A Feira de Pássaros) e a literatura em canto, verso e rima (Poética dos Violeiros) são os motes-eixos da obra.
Uma versão reduzida da obra seria publicada pela Cepe em 1974, com o título de Xilografia, ilustrada por José Costa Leite, composta pelos poemas Os Bichos, As Aves e As Paisagens. A poesia épica dividia com a lírica a atenção de Accioly. Em seguida, o poeta elaboraria uma trilogia clássica, composta por Sísifo, Íxion e Narciso. São obras de fôlego nas quais o poeta se aventura a rever a tradição épica e lírica ocidental e brasileira, tradição e vanguarda, num calhamaço de 400 páginas que funde Dante, da Divina Comédia, e Camões, de Os Lusíadas, com João Cabral de Melo Neto, de Educação pela Pedra, ao concretismo e o poema processo. É uma poesia de forte carga de oralidade e de uma temática tão ampla que inclui o cinema (mito de James Dean) à luta de boxe (Cassius Clay) à literatura best-seller (Papillon).
“O efeito, necessariamente, é o de uma obra kitsch”, anotou o poeta e crítico Affonso Romano de Sant'Anna. Com Sísifo, Accioly se propõe a fundar um novo épico, num gênero que denominou de “realismo épico”. Obra de reflexão sobre o papel do poeta-artista da segunda metade do século 20, em seus 10 cantos o personagem Sísifo é visto “em sua maldição solitária, a personificação do desperdício vital do homem contemporâneo, condenado a também realizar tarefas ‘árduas e inúteis’ para sobreviver no ‘infernal’ mercado contemporâneo”, no entender de Acácio Luiz dos Santos, doutor em Literatura Comparada da Universidade Federal Fluminense.
Accioly veria, então o poeta como alguém “condenado ao silêncio, estarrecido por uma cultura que abdicou por completo de um ideal de vida autêntica e aderiu à barbárie e ao reino das forças irracionais”. Em Íxion (Tempo Brasileiro, 1978) a palavra é a única arma que resta ao personagem para desafiar a todos os homens e enfrentar os deuses que o acorrentaram à roda de fogo. “Mais que um poema dramático e menos que uma tragédia grega, (…) uma tragédia à grega”, define o próprio Accioly. Mais uma vez, o escritor recorre à mitologia e mostra apreço pela forma fixa, ao escolher narrar esta obra dramática em uma única cena em decassílabos.
Com cinco cantos e cinco ecos, escrito todo em forma de soneto, com suas variações – de alexandrinos de 12 sílabas a redondilhas menores de cinco sílabas – incluindo a o soneto invertido, criado por ele, numa alusão ao jogo de espelhos, Narciso (Francisco Alves, 1984) é um dos livros mais bem-sucedidos de Accioly. Narciso é cantado após a figura mitológica grega se apaixonar pela própria imagem refletida e daí começar o seu infortúnio e da ninfa Eco, por ele apaixonada, sofrendo com o seu corpo após a morte no Hades.
ERÓTICO
O erotismo se fez presente com grande força nos versos de Marcus Accioly, que publicou Érato (69 poemas eróticos e uma ode ao vinho), pela José Olympio (1990), livro com o qual ganhou o Prêmio Jorge de Lima da Secretaria de Estado da Cultura (Secult) de Alagoas. Accioly segue a tradição que vem dos gregos e romanos, do Kama Sutra oriental e da poesia fescenina medieval e da romântica. “Que o eventual leitor não fuja à alegria de conviver com estes poemas incomparavelmente eróticos ou eroticamente incomparáveis, a que se junta — muito pagãmente — uma ode ao vinho que é, em termos clássico, um tratado poético. Todo um universo humano de experiências e saberes acumulados dentro do melhor hedonismo e desejáveis a todos os semelhantes, no sorriso e na alegria, brota deste manual de boa arte amatório-erótica, rico não só de saber, mas de engenho e arte”, alertava o imortal da ABL Antonio Houaiss sobre a leitura de Érato.
Com a proximidade dos 500 anos do descobrimento do Brasil, ele passou a se dedicar à feitura do longo poema Latinomérica, no qual se dedica a narrar, como um Homero dos trópicos e o uso da oitava camoniana, as histórias de violência sofrida pelo continente pelos colonizadores ao longo de cinco séculos, em poemas divididos em rounds como se fosse uma luta de boxe (que, segundo ele, exige uma grande preparação para poucos momentos no ringue). Accioly coloca os Estados Unidos como o sucessor de principalmente da Espanha, e no caso particular do Brasil, de Portugal, no projeto colonialista do continente.
“Uma coisa é cantar na América, outra é cantar a América; para cantar e contar por inteiro, só mesmo o poema inteiro, que é a epopéia”, explicava à época do lançamento. “Latinomérica, assim, se pretende a grande narrativa do continente, de suas conquistas e de suas derrotas, que, muitas vezes, se confundem. Mas, ao mesmo tempo, adota uma divisão, que permite uma leitura fragmentada. Cada página tem, em si, um sentido completo”, comentou Accioly, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, revelando que levou 20 anos escrevendo o poema.
Ao lado, como heróis ou anti-heróis, ele recorre desde a líderes indígenas, como Túpac Amaru, a líderes negros, como Zumbi, líderes camponeses, como Antônio Conselheiro e o líder cangaceiro Lampião, passando por revolucionários, como frei Caneca, e escritores, como Ernesto Sábato. Por outro lado, os heróis oficiais da Pátria, como Duque de Caxias, por exemplo, são contestados.
O livro, no entanto, não teve o impacto que o poeta pretendia, sendo acusado, pelo crítico Felipe Fortuna, do Jornal do Brasil, de se valer “de uma percepção primordialmente maniqueísta, tendente ao caricato, da qual Accioly obtém as imagens e metáforas mais virulentas dos seus versos”. Accioly lançaria ainda, em 2008, o livro Daguerreótipos, com 165 poemas (apenas o primeiro e o último não sendo soneto) no qual faz o retrato de personalidades, a maioria delas literárias – de Homero a Nelson Rodrigues, de Nietzsche e Marilyn Monroe a Luiz Gonzaga e Lampião, de Goethe e Flaubert a Che Guevara.
No entender do crítico Marcos Pasche, Marcus Accioly “copia as fotografias para manter o inesgotável exercício de reinvenção da poesia, que por sua vez reinventa vida, de inúmeras faces e grafias”. Poeta em tempo integral, escrever para ele era mais do que um prazer – era uma compulsão, uma obsessão.
“Gosto do termo, eu sou obsessivo mesmo. Sou tarado por escrever, de certa forma. É uma compulsão. Eu imagino o livro como um todo, ele surge em mim assim. Então, eu vou preenchendo o livro. Às vezes eu termino um e noto que falta uma palavra, por exemplo, ‘árvore’. Nesse caso, eu sou até capaz de reescrever um capítulo inteiro para a palavra entrar no meio e para que ela soe natural”, confessou em entrevista ao JC ao comemorar seus 70 anos.