POETAS ANALFABETOS

Especial - Poetas analfabetos: muito trabalho no rancho da solidão

No segundo dia da série de reportagens 'Poetas Analfabetos do Sertão do Pajeú de Pernambuco', conheça um pouco mais sobre a vida e obra destes artistas

JEFFERSON SOUSA
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JEFFERSON SOUSA
Publicado em 18/12/2017 às 16:30
(Foto: Jefferson Sousa/ Especial para o JC)
No segundo dia da série de reportagens 'Poetas Analfabetos do Sertão do Pajeú de Pernambuco', conheça um pouco mais sobre a vida e obra destes artistas - FOTO: (Foto: Jefferson Sousa/ Especial para o JC)
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O segundo dia da série de reportagens Poetas Analfabetos do Sertão do Pajeú de Pernambuco continua apresentando, através da vida e obra dos poetas Leonardo Bastião, Pedro Tenório de Lima e Antônio Pereira, a luta da cultura popular nordestina contra o descaso sociocultural.

Muito trabalho no rancho da solidão

O poeta Pedro Tenório mora a alguns metros da marca de onde ficava a casa onde nasceu e cresceu em Itapetim, Sertão do Pajeú, em Pernambco. “Sou agricultor desde que me conheço por gente”, defendeu. Uma curiosidade é que Pedro Tenório, com 74 anos, sempre trabalhou no roçado de outras pessoas – terras pequenas ou hectares, ele nunca negou trabalho.

Hoje, mora em uma casa de poucos cômodos localizada no pequeno sítio que já foi de seus pais. Ele passa muito tempo sentado em um antigo sofá que fica debaixo de uma longa árvore no seu terreiro. Em um dos galhos mais grossos do tronco, há duas cordas amarradas em uma base de madeira: um balanço improvisado que tanto diverte os netos de Pedro. Ao lado da árvore, há um milharal de poucos metros quadrados – por questão de espaço, a única plantação que é feita em seu terreno.

Pedro Tenório em seu sítio

Pedro Tenório caminhando pelo milharal de seu terreno em época de fartura (Foto: Jefferson Sousa/ Especial para o JC)

Ele só vai para a região urbana de Itapetim quando precisa fazer a feira para durar todo o mês ou quando tem um dos dois eventos do seu agrado: mesa de glosa – em uma mesa, oito poetas miram um papel colocado à frente com o mote, que são os dois versos finais de uma poesia que devem criar de improviso – e cantoria de viola – a última, sua favorita. Seu sítio fica ao leste de Itapetim, no caminho para o distrito de São Vicente.

A oeste do município, próximo à rodovia PE-263, fica o sítio de Leonardo Bastião, que sempre chega lá fielmente às cinco horas da manhã e sai, também pontualmente, às 17h. Acompanhado da esposa Alcina Guedes de Siqueira, ele dorme em uma casa de dois cômodos que fica localizada atrás da delegacia de Itapetim. Comprou e passou a ir para este local após ser, com Alcina, vítima de um sequestro relâmpago em 2001: alguns homens invadiram a casa do sítio e fizeram o casal de reféns, em seguida, ao perceberem que não havia nada de valor para roubar, agrediram os dois.

Repetidamente, todos os dias, ao chegar na área urbana da cidade, não demora muito para começar a reclamar: “Não gosto de tanta zoada. É carro com som alto passando direto, esses meninos empinando as motos, tudo até tarde”. O trauma de dona Alcina, esposa de Leonardo, é mais intenso do que o do marido, pois ela nunca mais pisou no sítio desde o episódio perturbador. Leonardo continua indo para a área rural porquê, além de criar dois amigos de longa data – um cachorro vira-lata de seis anos e um jumento de quase 12 –, é o único local onde consegue realmente se sentir conectado com seus pensamentos.

“Passo o dia aqui sozinho/ No rancho da solidão/ Não tem quem faça comida/ E fico olhando o fogão/ Vendo as manchas do passado/ Da mesma cor do carvão. / E quando passa a ilusão/ parece que o tempo avoa/; A velhice abre ferida/ No coração da pessoa/ E se for lembrar o passado/ Fica pior que ‘amagoa’”, declamou, da cozinha, apontando para o fogão a lenha.

Leonardo Bastião andando pelo lajedo que cavou

Leonardo Bastião caminhando pelo lajedo que cavou (Foto: Jefferson Sousa/ Especial para o JC)

Em compensação, Leonardo não costuma passar o tempo de maneira ociosa. Por exemplo, ele atravessou todo o ano de 2015 cavando sozinho uma área volumosa de terra que estava em cima de um extenso lajedo na esperança de criar um tanque que armazenasse grandes quantidades de água. Em 2016, quando tudo estava aparentemente pronto, veio a primeira grande chuva do ano, mas toda a água acumulada escorreu no dia seguinte por entre as brechas das pedras. Ele atravessou, novamente, um ano inteiro cavando e agora também tampando possíveis brechas. Em janeiro de 2017, pouco antes da chuva, quando a reportagem foi encontrá-lo pela primeira vez, havia tanta terra acumulada ao lado desse “buraco” que a prefeitura precisou enviar um trator para ajudá-lo a retirar o acumulo de terra.

É DIA DE FESTA

Pedro, mantendo a admiração pela mesa de glosa e cantoria, chegou no meio da praça Rogaciano Leite (no centro de Itapetim) cedo, com o intuito de poder ver o show sentado. Enquanto tudo ainda estava em fase de organização, Pedro declamou: “Dei uma tapa em Raimundo Caetano/ Acabei com a besteira e o dinheiro/ Dei um chute em Pinto do Monteiro/ Que seu corpo saiu se balançando/ Vila Nova tá velho, tá cochilando/ Sua boca parece uma calçola/ Só almoça depois que pede esmola/ Eu não quero estragar a sua janta/ Ser poeta do jeito que tu canta/ Faz vergonha pegar numa viola”, está é, dentre as suas autorais que se lembra completamente, a que mais gosta de repetir.

Quem também estava na cantoria era Leonardo Bastião. Logo ele, que não gosta de muita gente reunida. Mas, pelo que pareceu, tinha ido ao evento na intenção de se parabenizar e comemorar o tanque que finalmente encheu e não está escorrendo água. Acontecimento que Leonardo sai dizendo para várias pessoas, até chegar em Pedro, no qual conversam um pouco.

Era noite do evento 2º Mesa de Glosa Para as Mulheres, em Itapetim. Os cochichos entre os dois pararam quando o show começou: “Olha quem está ali. Nossa, como elas cresceram”, Leonardo estava se referindo às quatro crianças que estavam no palco. As meninas, com idade entre seis e 12 anos, são as bisnetas de Antônio Pereira, declamando entre poesias autorais e as do bisavô, como “Adão me deu dez saudades/ Eu lhe disse: muito bem!/ Dê nove, fique com uma/ Que todas não lhe convêm./ Mas eu caí na besteira,/ Não reparti com ninguém”, verbalizada com firmeza e alegria.

Resistência como forma de preservação

Bernardo Ferreira ao lado de Leonardo; Bernardo filmando Pedro Tenório

Bernardo Ferreira ao lado de Leonardo Bastião; Pedro Tenório sendo filmado por Bernardo Ferreira (Foto: Jefferson Sousa/ Especial para o JC)

O conselheiro tutelar do município de Itapetim (PE) e amante da poesia Bernardo Ferreira criou um canal no site YouTube em 18 de agosto de 2008 e, desde então, passou a publicar vídeos relacionados à cultura popular que, mais tarde, passaram a ser referência na cena poética da região por conta da popularidade e, consequentemente, divulgação dos artistas. Todavia, não foi desde o início das suas atividades como produtor de conteúdo para a internet que Bernardo tinha conhecimento que seus vídeos estavam disponíveis de maneira pública, muito menos da potencialidade do seu alcance.

“Na época em que eu criei o canal, eu achava que o YouTube era um local onde a gente simplesmente guardava vídeos. Só fui descobrir que eles estavam sendo vistos lá para 2011, quando comecei a receber várias notificações do Google informando que o meu canal estava mantendo uma média mensal de milhares de acessos”, contou Bernardo.

O motivo do altíssimo número de acessos vai muito além do entretenimento. Filmagens de cantadores de viola, cotidianos nordestinos e, principalmente, declamações de poesias fizeram do canal youtube.com/BernardoGarapa uma referência de serviço para a preservação da cultura nordestina: gravações exclusivas trazem detalhes desde a vida e obra de artistas que já faleceram até os que ainda estão vivos, mas afastados da zona urbana e que, em alguns casos, nem sequer se reconhecem como artistas.
A popularização da imagem desses poetas fomentou a constatação dos seus respectivos trabalhos por parte da comunidade regional. Leonardo Bastião é o principal exemplo da transcendência social perante a divulgação de sua obra, alcançando dezenas de milhares de visualizações por cada vídeo de declamação, ele já despertou o fascínio de artistas como Santanna o Cantador – que chegou a ir para Itapetim exclusivamente para visitá-lo –, e Onildo Barbosa – que lançou uma cantoria em sua homenagem.
Sem manter uma frequência exata, Bernardo publica em torno de cinco vídeos por semana entre o site de compartilhamento de audiovisual e suas redes sociais. Atualmente, o canal youtube.com/bernardogarapa já ultrapassa a marca de dois mil vídeos publicados e contabiliza, em seu total, mais de sete milhões de visualizações e 13 mil inscritos.

Um dos perfis no facebook de Bernardo contém, entre centenas de vídeos publicados, um único de declamação de poesia que contabiliza mais de 47 mil compartilhamentos e 1,5 milhão de visualizações cujo título é Pra que tanta riqueza se a pessoa/ nada leva daqui pra sepultura, mote e poesia de autoria e declamação de José Adalberto (facebook.com/itapetim.net/videos/10203000001304483).

O José Adalberto do famoso vídeo é professor e poeta com cinco livros lançados. “Esses poetas têm um papel extremamente motivador de sentimentos, identidade cultural, retenção de memórias afetivas e históricas, além de despertaram o senso crítico de suas gerações, de uma forma consistente e necessária, como formadores de opinião de fácil entendimento e persuasão”, explicou José, que não quis concluir sem antes destacar o seu poema predileto de Leonardo Bastião: “Juazeiro é uma planta/ Que resiste à terra enxuta/ A fruta não dá pra nada/ A madeira é torta e bruta/ Mas a bondade da sobra/ Tira a ruindade da fruta”, concluiu, com a precisão e dicção de quem já repetiu muito esses versos anteriormente.

Assim como José Adalberto, o trabalho de preservação e valorização dos talentos parcialmente esquecidos se expande para o serviço dos poetas produtores de eventos culturais Alexandre Moraes, de Afogados da Ingazeira (PE); Henrique Brandão, de Serra Talhada (PE); Dedé Monteiro e Genildo Santana, de Tabira (PE); Lenelson Piancó, de Itapetim (PE); Fernando Marques, de Tuparetama (PE); Isabelly Moreira, Antônio Marinho e Vinícius Gregório, de São José do Egito (PE); Gislândio Araújo e Ayrton Queiroz, de Brejinho (PE).

Assim, é possível assimilar que não há bandeira municipal que vá acima do serviço de quem luta para levar honorabilidade para os nomes que, de maneira anônima e despretensiosa, ergueram uma importante parcela da cultura popular pernambucana contemporânea.

A primeira reportagem desta série está disponível clicando AQUI.

A terceira e última reportagem [ com vídeo] desta série está disponível clicando AQUI.

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