MEMÓRIA

Conferência celebra 70 anos do livro 'Arruar', de Mário Sette

A obra traz um retrato afetivo do Recife do século 19 através da memória e de documentos como páginas de jornais

Diogo Guedes
Cadastrado por
Diogo Guedes
Publicado em 08/01/2018 às 6:15
Reprodução
A obra traz um retrato afetivo do Recife do século 19 através da memória e de documentos como páginas de jornais - FOTO: Reprodução
Leitura:

Talvez não houvesse um sinal maior de indiferença para o escritor e memorialista pernambucano Mário Sette (1886-1950) do que andar pelo Recife sem prestar atenção. Muito mais do que um espaço de passagem, a cidade era algo para ser sentido. Uma experiência feita do presente, mas que só se tornava plena com os vestígios do passado, com a vontade de investigar e imaginar o que já se passou entre esquinas, ruas e pessoas. Andar pela cidade era, portanto, “pisar e querer adivinhar os que já pisaram”.

Mário Sette deixou o seu registro – pessoal e passional – dessa cidade sentimental que viu e viveu no livro Arruar – História Pitoresca do Recife Antigo. Em 2018, a obra completa 70 anos de seu lançamento. A publicação será lembrada nesta segunda (8/1), às 15h, em um evento gratuito na Academia Pernambucana de Letras. Na ocasião, o professor e crítico literário Lourival Holanda comenta a obra, que vai voltar as prateleiras das livrarias em maio, em reedição da Cepe Editora.

Apesar de ter sido lançado em 1948, o retrato afetivo do Recife apresentado em Arruar começou a ser composto bem antes, quando Mário Sette tinha apenas 16 anos e retornava à cidade depois de morar no Rio de Janeiro. Passou mais de quatro décadas guardando histórias e observações até publicar o livro: se quando fazia versos líricos para as mulheres, aos 60 escrevia odes a sua grande paixão, uma cidade.

O Recife de Mário Sette é feito de ruas, bondes, anúncios de jornais e outros elementos documentais. No entanto, o que mais desperta o interesse do escritor é forjar a partir desses dados as pessoas, os costumes e a sociedade do começo do século 20 e de antes, quando viveram seus avós. O termo que dá título ao livro, arruar, vem da cabine em que as senhoras de engenho usavam para andar pela cidade, carregadas por quatro escravos. Mário Sette usa arruar como um verbo, o ato de contemplar a cidade através do passeio lento, mas não deixa de criticar (ainda que tomado de um saudosismo quase reverente) as “cadeirinhas” de outrora: “misto de recato e de ostentação” e poder isolador, que permitia ver “tudo sem perigo de contágio” com a rua.

SEM NOSTALGIA

“É bom recuperar essa memória, ainda que a gente não vá olhar para trás com a tentação fácil da nostalgia”, explica Lourival Holanda. Para ele, o importante de uma leitura atual de Arruar é ter em vista o “olhar exigente com o presente” do livro e lembrar que já houve uma época em que andar pela cidade era um prazer. “Em Arruar, Mário Sette vê uma vontade de recuperar alguma coisa perdida na dimensão humana da cidade. Hoje, seria impossível arruar no sentido que ele fala: tudo é muito rápido. Então, no anos 1940, ele já via nascer um outro ritmo da modernidade, antecipava essa questão”, comenta o crítico.

Para Lourival, o saudosismo de Mário Sette é indisfarçável – tanto que o autor direciona sua utopia para o passado e para a memória. “Além disso, ele escreve bem, ainda que em uma série de coisas a gente discorde dele, pois há um toque meio afrancesado, classista. Gosto de comparar a escrita dele com a do Carapuceiro, que tinha um ponto de vista mais moralizador e saia xingando todo mundo. O olhar de Mário Sette é mais antropológico”, descreve. Lourival ainda vê nos textos do memorialista um contramovimento ao ideal das cidades geométricas. “Uma das funções do olhar poético de Mário Sette é cobrar a presença da visão humana dentro desses ideais”, aponta.

O gesto do memorialista em Arruar é o de registrar um passado (retocado pelo afeto e pela idealização distante) diante do risco da modernidade sem freios. “Atravessamos as ruas apenas com o cuidado nos automóveis e olhamos as placas das esquinas sem outro propósito do que lhes ler os nomes. Somos, no cenário de nosso nascimento e de nossa vida costumeira, quase uns estranhos à sua história, às suas tradições, à sua poesia. (...) Desdenhamos não somente o passado de nossa terra, mas o nosso próprio passado...”, escreveu Mário Sette.

Não é por acaso que Gilberto Freyre abraçou a obra: o livro ressaltava a busca do regionalismo freyriano e trazia ainda um parentesco com o Guia Prático, Histórico e Sentimental da Cidade do Recife (1934). Manuel Bandeira, que mesclava o modernismo regionalista e as vanguardas na sua poética, também foi um dos entusiastas de Arruar. Encontrou lá uma outra imaginação memoriosa, como a que o poeta havia feito em Evocação do Recife. “A imagem do Recife da minha infância se confunde em meu espírito com a imagem do meu avô e ouvir alguém contar a história do Recife no século 19 equivale a ouvir contar a biografia de meu avô”, escreveu em carta a Mário Sette. Bandeira viu ali o “Recife sem mais nada”, o Recife simples, mas com retoques saborosos da memória.

 

Últimas notícias