São José do Egito

Festa de Louro: mulheres ganham dicção na poesia do Pajeú

Cada vez mais, mulheres quebram a antiga regra tácita de que o exercício público da poesia era privilégio masculino

Bruno Albertim
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Bruno Albertim
Publicado em 15/01/2018 às 15:32
Mariana Pinheiro / Especial para o JC
Cada vez mais, mulheres quebram a antiga regra tácita de que o exercício público da poesia era privilégio masculino - FOTO: Mariana Pinheiro / Especial para o JC
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Cenho franzido, expressão concentrada, a bacharel em história Daiane Rocha, de apenas 21 anos, escuta o mote anunciado pelo presidente da mesa. Em alguns minutos, solta, de improviso, os versos. Hoje mais comum nos encontros informais ao redor de mesas de bar, nos terraços de casa ou organizados em palcos profissionais, a presença da mulher era rara nas mesas de glosa. Quase inexistente. “Não é que mulher não pudesse participar de poesia. Mas elas simplesmente não iam”, diz ela, sobre o tempo, cada vez mais passado, em que uma certa interdição tácita dizia ser do homem o exercício público da poesia no Pajeú.

Como outras meninas de sua geração, Daiane corre o Estado, sobretudo os municípios do Sertão do Pajeú, participando deste ambiente outrora exclusivamente masculino chamado mesa de glosa. “Nas mesas, as mulheres já glosam com uma desenvoltura que antes não se via”, atesta o poeta Jorge Filó, contumaz organizador de glosas. É o que se vê a cada Festa de Louro.

Nos dicionários, glosar é verbo que significa retirar e devolver alguma coisa ao seu estado original, subtraindo parte dela. Atribuindo-lhe novo sentido em relação ao ponto de partida. No vocabulário corrente do Pajeú, é metabolizar o raciocínio em versos metrificados a partir de um mote estabelecido. Ganha a mesa quem melhor faz a travessia entre o ponto de partida e os versos de chegada.

“As mulheres ainda se dedicam mais à poesia de papel e caneta, mas eu gosto mesmo é do desafio de improvisar na hora, no lugar onde só os homens estavam”, diz a jovem Daiane que, aos 12 anos, começou a escrever, nos intervalos da escola, seus primeiros versos satíricos. “Minha família não é de poetas, mas aqui, a gente nasce e cresce ouvindo a cantoria”, diz ela, ciente do peso do ambiente ao redor.

Deliberadamente, as novas poetas se inscrevem num universo ocupado quase que exclusivamente por Severina Branca. Nascida no distrito de Novo Mundo, no ano de 1944 em que findava a Segunda Grande Guerra, Severina se fez figura marcante na vida mundana de São José. Hoje cega de um olho, foi quase que exclusivamente a única poeta mulher do Pajeú. O que não lhe seria suficiente para o sustento. Prostituta famosa na região, de serviços prestados a várias figuras públicas da cidade, Severina ficaria conhecida pela sinceridade de seus versos sobre a solidão de poeta e do varejo do sexo.

Seu mote "O Silêncio da noite é que tem sido testemunha das minhas amarguras" alimentou cantorias noite afora e hoje. Inspirado nele, o falecido cantor e compositor Zeto, ex-marido de Bia Marinho, escreveu um dos poemas mais existencialmente densos do Pajeú. “O pecado para mim é testemunha/ Pois ladeia meu peito o tempo inteiro/ Do primeiro ao último parceiro/ Dou um nome diferente, faço alcunha/ O vermelho é perene em minha unha/ Meu trabalho é melhor sendo às escuras/ Sou alguém que procura umas procuras/ Que navegam o rio do gemido/ O silêncio da noite é que tem sido/ Testemunha das minhas amarguras”.

Para a única filha que criou (outros morreriam), Severina escreveu uma sextilha também existencial: “Sou mulher de sentimento/ Às duas da madrugada/ Levando a chave na mão/ Deixando a porta trancada/ E uma filha na cama/ Sem esperança de nada”. “Severina foi uma espécie de ponto de encontro de todos os grandes poetas da sua geração, uma das poucas remanescentes e memória de seu tempo”, sintetiza o cineasta Petrônio Lorena, que se prepara para estrear em salas comerciais seu documentário sobre a poesia do Pajeú. O título é também emprestado do famoso mote de Severina: "O Silêncio da Noite É Que Tem Sido Testemunha das Minhas Amarguras".

Ainda de respostas muito rápidas, Severina, contudo, já não participa mais de glosas. “Não faço muito mais versos, não”, sintetiza. Mas tem visto surgir novas poetas nas trincheiras onde esteve quase só. Cordelista, poeta, apresentadora, cantora e instrumentistas da banda As Severinas, a também estudante de Direito Isabelly Moreira de Almeida, 24 anos é uma dessas vozes femininas mais atuantes na paisagem literária das ruas.

 DE NINGUÉM

“Aqui, a poesia é tão espontânea que é como se a gente apenas cultivasse o que já tem. Meus amigos são poetas, os familiares são poetas. Quem mora em São José tem, no mínimo, respeito pela poesia. Fazer poesia é dizer de onde eu vim. É agradecer ao Pajeú por ter me tornado quem eu sou”, diz ela, que localiza sua fala poética além da geografia cultural encravada nas montadas de São José do Egito. “Não posso deixar de expressar quem eu sou. Principalmente nas pelejas, quando um cantador desafia o outro e há o apelo grande para o riso da plateia, ainda tem machismo. Eu não concordo com isso. Toda vez que subo ao palco, é preciso saber que levo a poesia de uma mulher, nordestina, homossexual. A poesia é também o que somos”, diz a jovem poeta que, sinteticamente, homenageou, em versos, a musa às avessas que tem sido Severina Branca.

“Meia luz, meia noite, nada inteiro./ Ocupado e vazio é o coração./ Não existe sequer o amor primeiro,? / Nem amor de ninguém / Só ilusão /”, dizem os primeiros versos do poema A meretriz.

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