Festa de Louro

Festa de Louro: um rio que não passa

Um mês depois de morto, Louro do Pajeú, o sertanejo reconhecido por Mário de Andrade e pela Delta Larousse como Rei do Improviso, teve uma festa de aniversário como se estivesse vivo. Assim segue o ritual até os dias atuais. O publica, hoje e amanhã, reportagens sobre a os herdeiros e a herança do mito, com textos de Bruno Albertim e fotos de Mariana Pinheiro.

Bruno Albertim
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Publicado em 14/01/2018 às 4:00
Mariana Pinheiro / Especial para o JC
Um mês depois de morto, Louro do Pajeú, o sertanejo reconhecido por Mário de Andrade e pela Delta Larousse como “Rei do Improviso”, teve uma festa de aniversário como se estivesse vivo. Assim segue o ritual até os dias atuais. O publica, hoje e amanhã, reportagens sobre a os herdeiros e a herança do mito, com textos de Bruno Albertim e fotos de Mariana Pinheiro. - FOTO: Mariana Pinheiro / Especial para o JC
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SÃO JOSÉ DO EGITO – À frente do palco, óculos mal escondendo o olhar atento, o corpo magro do cantor ondulava por entre os versos cantados com determinação de chuva: “Você não aceita nem, sequer, suspeita / Que eu já posso viver sem você./ Ignora quando eu digo que o poeta /Tem mais asas que as que você vê / Você dançou, pensou que fosse me prender / No que você chamou de amor. /Nem se tocou, não pode perceber /O que é maior que o sonhador!/ E acredite que eu não vou levar comigo /Seus motivos pra voar. / Você será feliz quem sabe, um dia, vai entender / E, até, dizer que já me pode amar!”.

Seria apenas mais uma apresentação de uma das mais gratas revelações da música pop contemporânea de Pernambuco, se o vocalista da banda Encanto e Poesia não estivesse ali, na verdade, cantando para comemorar o aniversário de um homem que já não vive. Desde 1992, os fãs se recusam, de alguma forma, a aceitar que morreu Lourival Batista Patriota, o mítico Louro do Pajeú, homem que entraria para a história em compilações de Câmara Cascudo, do modernista Mário de Andrade, ou da vetusta enciclopédia Delta Larousse, como o maior improvisador da poesia de repente.

A cada Dia de Reis, a população local e vizinha acorre à cidade de São José do Egito, coração pulsante do Sertão do Pajeú (PE), para comemorar o aniversário de Louro. Mais que um evento, a festa, visitada este ano pela reportagem do Jornal do Commercio, confirma que a poesia, assim como a memória de Louro, não morreu. Permanece nos versos improvisados de rodas de glosa, cantadores de rua/feira ou como argamassa de expressões mais contemporâneas.

Escritor, dramaturgo e pesquisador, o paraibano Braulio Tavares era um entre a massa humana tão diversa quanto integrada: estudantes, jovens artistas do Recife, atrizes, donas da casa, feirantes, motoboys, profissionais liberais interessados nessa tal densidade poética de São José. “A festa de Louro é como a lua: cresce agora, diminui mais tarde, depois volta a crescer, e se mantém há cerca de meio século abrindo com poesia o ano civil do Pajeú. Hoje são seus netos que tomam a frente, amanhã serão seus bisnetos. As crises políticas e econômicas vêm e passam, e a poesia continua firme e leve, fotografando a alma do tempo”, sintetizou Braulio, que este ano esteve na festa para lançar seu livro Bandeira Sobrinho – Uma Vida e Alguns Versos (Editora Imeph).

O POETA

Lourival Batista Patriota nasceu em 6 de janeiro de 1915. De uma família de agricultores, recebeu da mãe, Severina, o gosto precoce pela poesia. Depois de estudar o colegial no Recife, em 1933, e ter se deparado de forma incontornável com cantadores do Mercado de São José, aos 18 anos, de volta a São José do Egito, ganhou vulto como um trocadilhista invencível.
Por mais de 30 anos, suas pelejas com o mais frequente parceiro, Pinto do Monteiro, deram musculatura e mito à poesia de improviso do Pajeú, materializada em dezenas de estilos, formas de expressão que remontam à poesia metrificada da Odisseia de Homero ou à simetria rigorosa de Dante Alighieri.
Ao casar com a filha do também lendário poeta Antônio Marinho, fez de sua casa com Helena, a “Mãe Nena”, uma maternidade constante de versos. “Meu avô era poeta, mas minha avó era a poesia”, diz o neto Antônio Marinho, sobre a casa constantemente aberta a quem chegasse, independentemente de credo, veio político ou sexualidade. “Minha avó nem perguntava quem era a pessoa, apenas acolhia”.

Todos os aniversários de Louro, portanto, eram certeza de casa cheia. “A festa era tão forte e consolidada na vida de toda gente que, um mês depois da morte dele, as pessoas continuaram a vir como se não ele não tivesse morrido”. O jeito, diz o neto, era botar o feijão no fogo e a poesia na rua. Com a morte de Dona Helena, em 2005, a casa ficou fechada até 2010. “No ano seguinte, os moradores da Rua Domingos Siqueira, sem falar com a família nem nada, se uniram, chamaram um monte de poetas, um trio pé-de-serra e fizeram a festa na rua”, diz Marinho, que há dois anos, no centenário da morte do avô, tendo transformado a casa em instituto, consolidou uma parceria com a produtora Página 21. Transformou a festa em festival e, com os artistas da família mais convidados como Chico César, Xangai ou Cátia de França, comemora o aniversário durante quatro dias seguidos. Antigos ou novos, confirmam os versos de um poeta sobre o fato: o Pajeú é um rio que não passa.

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