entrevista

A literatura sem vírgulas e sem amenidades de Ezter Liu

A escritora lança a obra vencedora do Prêmio Pernambuco de Literatura, 'Das Tripas Coração'

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 24/04/2018 às 8:02
Mery Lemos/Divulgação
A escritora lança a obra vencedora do Prêmio Pernambuco de Literatura, 'Das Tripas Coração' - FOTO: Mery Lemos/Divulgação
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No conto Burn the Witch, a escritora pernambucana Ezter Liu fala de uma personagem, mas talvez também defina bem o seu livro, Das Tripas Coração: “Todas aquelas dores são suas. Ela concentra milhares de úteros dentro do seu útero”. Formada por personagens femininas, a obra foi a grande vencedora do Prêmio Pernambuco de Literatura de 2017 e será lançada quinta (26), às 19h, no Museu do Estado, com dos demais agraciados. Em entrevista, Ezter fala de como criou as histórias: “não as busquei, elas vieram a mim”.

ENTREVISTA

JORNAL DO COMMERCIO – Ezter, você é a primeira mulher a ser a vencedora principal do Prêmio Pernambuco. O que a honraria significou (e significa) para você?
EZTER LIU – Essa honraria significou muito pra mim. Fiquei naturalmente orgulhosa da minha cria. Foi como um reforço positivo ao meu trabalho e esforço. Legal também porque dá uma visibilidade interessante ao livro. Por outro lado eu fico pensando que demorou, né? Pra uma mulher ganhar... Enfim já foram cinco edições e já estava mais que na hora.

JC – Das Tripas Coração se centra em contos protagonizados por mulheres. É ainda mais simbólico o prêmio por esse foco das narrativas? Como chegou a esse formato?
EZTER – Eu acho muito simbólico que uma mulher tenha sido premiada e com um livro de contos sobre mulheres. Isso diz muito desse momento de valorização do feminino, da escrita feminina e do protagonismo feminino de um modo geral.
Esse formato foi pensado porque eu não queria contos avulsos, eu queria algo que unificasse, eu queria alinhavar as histórias e por isso escolhi um tema comum a todos e escolhi também escrever sem vírgulas todas as narrativas. Foi uma forma de tentar dar uma unidade aos contos, fazê-los pertencer ao livro sem se parecer demais uns com os outros. Foi trabalhoso, mas gostei do resultado. Outra ideia foi escrever todos em terceira pessoa. Acabei escapulindo e saiu o Vulvas Brancas em primeira, mas gostei tanto dele que acabei deixando.

JC – Nos contos, a sua linguagem é cortante, curta. A temática é muitas vezes também dura, espinhosa. Foi uma obra difícil de escrever? O que a ajudou a chegar na escrita final?
EZTER – Nos contos minha linguagem é cortante e curta, na vida não é diferente. O que eu posso dizer sobre os períodos curtos, sobre a temática espinhosa é que foram fruto do momento que eu estava passando. Quando botei a mão na massa de verdade, meses antes de enviar os originais, eu estava tendo crises de ansiedade bem pesadas, então, o fôlego era pouco, eu precisava dizer o que conseguia com a respiração que tinha. O ritmo que eu imprimi no texto (agora sei disso) era o ritmo daquele momento. Eu não estava muito pra vírgulas, nem pra amenidades. Saiu do jeito que deu.
Quanto a ser dura, espinhosa, acho que sou eu sendo eu mesma, eu sou quase um cacto (risos)

JC – O livro também parece trazer mulheres de diferentes vivências, origens e contextos. Foi intencional, uma forma de ir além de uma representação restrita das mulheres?
EZTER – O livro traz sim diferentes identidades em diferentes contextos. O que eu posso dizer é que não as busquei, elas vieram a mim. Não foi cerebral criar esse panorama, mas gostei do resultado porque de fato acabou sendo um leque de representatividades tanto no que diz respeito as personagens, quanto no que foi abordado em cada uma delas, enfim... Tem amor, ódio, ironia, tristeza, e por aí vai... É como a vida né?

JC – Acha que Das Tripas Coração é também um manifesto, um desabafo?
EZTER – Não acho que o Das Tripas Coração seja um manifesto. Se soou assim tudo bem, mas não foi essa a intenção. O conto Quem é o único onde eu vejo essa característica. As perguntas que eu faço no conto são mais deliberadamente provocadoras, questionadoras... É como cutucar as feridas (as minhas e as dos leitores). As demais narrativas eu vejo como histórias que de um jeito ou de outro podem também ter algum viés nesse sentido, mas não foi de propósito. Talvez isso vá aflorar depois, a depender da receptividade dos leitores, afinal, cada um recebe o texto de uma forma, e pode ser que vire um manifesto pra alguém. Seria bem legal se virasse.

CRÍTICA

As personagens do livro Das Tripas Coração são diversas. Algumas vivem um relacionamento violento, outras estão isoladas na própria vida precária, pelo menos uma quer esquecer um amor. São de classe, vivências, passado e, principalmente, desejos diferentes. Todas são mulheres que habitam narrativas sem espaço para o ameno.

Os contos se centram no feminino – na dor, na opressão e na luta –, mas não seguem um roteiro repetido ou programado. Na primeira história, uma mulher divide sua casa com formigas, fabricando a paz. Na seguinte, uma mãe chega “duas vezes naquele lugar”: “Primeiro chegou só o corpo depois chegou sua alma com um infinitésimo de atraso. (...) Uma apagada outra acesa.”

Em outros casos, fica mais claro como as mulheres criadas e contadas por Ezter vivem diante de uma sociedade hostil. Narrativas como Quem, recheada de perguntas incômodas, são mais diretas no que se propõem a dizer. Credo traz uma mulher no meio da luta, com cartazes e companheiras, em busca da “melhor verdade que pode ter”.

Outra unidade da obra é a linguagem, que se constrói direta sem pedir licença. Ezter abdica das vírgulas para criar textos com pausas duras – através de pontos finais – e arestas. No conto Fumaça, a protagonista não tem nome, mas, quando o texto fala do seu marido, o chama de “Fulano” – torna-o qualquer coisa porque ele é mais indeterminado, vazio e ausente do que a mulher.

Em um dos melhores contos do livro, Helena, faz um paralelismo com a história da Guerra de Troia, mas sem se prender em uma meta-literatura estanque. A sua Helena é sequestrada pela memória: “Esquecer lhe parecia mais possível do que desfazer”. “A cidade não era sua. As memórias eram. Andando rápido coletava com urgência toda transitoriedade possível. A cidade não era sua. Mas estava demais na sua cabeça”, continua o conto. O melhor exemplo, talvez, da variedade intensa das narrativas de Ezter.

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