A trilogia do chef

Bourdain: a obra sobrevive ao autor

Depois da morte do autor, Cozinha confidencial volta a entrar na lista dos mais vendidos do Times

Bruno Albertim
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Bruno Albertim
Publicado em 17/06/2018 às 0:11
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Depois da morte do autor, Cozinha confidencial volta a entrar na lista dos mais vendidos do Times - FOTO: AFP
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Era previsível, o caldo voltaria a ferver. Esta semana, o New York Times incluiu, outra vez, Cozinha Confidencial na sua lista dos mais vendidos. Com o suicídio de Anthony Bourdain, chef midiático celebrado mundialmente aos 61 anos, há uma semana, o interesse pelo best-seller repetiu o fenômeno de 18 anos atrás. Aquele livro estranho - nem romance, nem autobiografia, nem crônicas de cozinha, mas muito de tudo isso ao mesmo tempo -, com mais de um milhão de cópias vendidas quando de seu lançamento, pela primeira vez incluiu um título de “gastronomia” no cânone máximo sobre o que se lê pelo mundo. Além do interesse mundano pela intimidade do autor - celebridades subitamente mortas sempre foram perversamente convenientes para a indústria -, por que, afinal, a obra deve sobreviver ao autor?

Tudo que havia sido publicado anteriormente sobre o universo das grandes cozinhas nos ajudava a ver os personagens de restaurantes tão cultuados como inacessíveis como mitos plácidos e inalcançáveis. Romancista de pena segura, autor de dois títulos anteriores sem maior repercussão, Bourdain apresentava a gastronomia pelo magnetismo do anti-glamour. Sem economizar em escândalos auto-biográficos, revelou a si e vários chefs celebrizados pelas mitificantes revistas de gastronomia como eles eram ou são: um bando de talentosos alcoólatras, viciados, egoístas e ninfomaníacos para os quais o hedonismo sem legislação deveria ser o único meio digno de continuar se movendo sobre a terra. “Seu corpo não é um templo; é um parque de diversões. Aproveite o passeio", dizia Bordain, para, produtor de aforismos que poderiam ser talhados em pedra, sintetizar: “Para mim, a vida sem caldo de vitela, gordura de porco, linguiça, miúdos ou mesmo queijo fedido é uma vida que não vale a pena ser vivida”.

Bourdain era, enfim, o beatnik das panelas. "Eu deveria ter morrido aos 20 anos. Fiz sucesso aos 40. Tornei-me pai aos 50. Sinto como se tivesse roubado um carro - um carro muito legal - e continuo procurando pelo espelho retrovisor as sirenes da polícia. Mas elas ainda não apareceram": o balanço que fez da vida alguns anos antes de morrer talvez nos indique que o anti-herói de talento proporcional à capacidade de sobrevivência não era um mero personagem de si. Assim, no capítulo Anos Rebeldes, ele conta como, à base de metadona, ia se reerguendo outra vez diante de um fogão industrial: “Uma das grandes ironias da minha carreira foi que tudo desandou assim que larguei a heroína. Totalmente drogado, eu era, mal ou bem, um chef com um bom salário, apreciado tanto pelas brigadas de cozinha e salão quanto pelos donos. Estabilizado com metadona, tornei-me uma pessoa por quem quase ninguém decente se disporia a contratar: um cheirador de pó preguiçoso e desonesto, um vigarista picareta, um safado que operava às escondidas nos confins culinários, pulando de galho em galho, muitas vezes com pseudônimo. Trabalhei num hotel sebento no norte da avenida Madison, um lugar tão devagar que o único garçom tinha que descer até o porão e me acordar quando chegava um freguês”.

Bourdain usou o sarcasmo e a auto-impiedade, impressos como humor, como tábua de salvação e navegação. Chef sem qualquer brilhantismo em sua paisagem pelo restaurante nova-iorquino Les Halles, ele se viu celebrizado depois da despudorada sinceridade do artigo Não leia antes de ler isso, publicado pela New Yorker em 1990. No texto, quando todos nós queríamos dignificar os chefs para mostrar que, sim, cozinhar pode ser tão estruturante como compor ou filmar, ele dava a real. Além de manteiga, ervas e um bom caldo, a cozinha era uma centopeia movida pela tríade drogas, sexo e ronquinhos na qual o chef estrelado que nos cobra a terceira vértebra por uma refeição não vai ter pudor de cuspir no seu prato se você dele reclamar. Cozinha confidencial é o artigo da New Yorker dilatado - e os outros dois livros subsequentes de Bourdain, sua continuação inevitável.

EM BUSCA DO PRATO PERFEITO: BOURDAIN DESCOBRE QUE A COZINHA NÃO GIRA EM SEU UMBIGO

É já um Bourdain consagrado e popularizado pelo programa da Food NetWork distribuído no mundo o autor de Em busca do prato perfeito (2001), seu segundo livro. Ali, ele mostra saber que o mundo ou cozinha não gravitam em sua órbita. (Muito bem) pago para comer pelo mundo, ele engole o melhor sushi de sua vida no Japão - feito com arroz quente, como no passado; devora uma cobra inteira no Vietnã - incluindo seus sangue e ossos; e prova porco em Portugal - refeição que começa no barulhento ritual, para quem acredita que comida nasce no supermercado, de matar o animal: “Em toda minha carreira, fui como Michel Corleone em O poderoso chefão,, ordenando assassinatos por telefone, com um simples olhar ou meneio de cabeça (...) Para um sujeito que passara os últimos 28 anos servindo animais e rangendo os dentes para vegetarianos, eu estava tendo problemas demais em seguir com o programa. Foram necessários quatro homens fortes para dominar o bicho, arrastá-lo e jogá-lo de lado numa carroça pesada de madeira”: sim, Bourdain investia no preceito fundamental da antropologia. Praticava a observação participante.

O Vietnã, contudo, é o grande escopo do livro. E a comida lhe serve de ponto de partida para perceber o mundo para o qual seus sabores já não fará diferença. Logo após seu suicídio, não foram os poucos que compartilham o já antológico texto A ferida, escrito sob o impacto de conhecer um sobrevivente da Guerra do Vietnã alimentada com Napalm: “Já estava acostumado aos amputados, às vitimas do agente laranja, aos famintos, pobres, garotos de rua de seis anos de idade que você encontra às três da madrugada gritando "Feliz ano novo! Olá! Bye-Bye!" em inglês, e depois aponta para suas bocas e faz "bum bum?". Estou ficando quase indiferente aos garotos famintos, sem pernas, sem braços, cobertos de cicatrizes, desesperançados, dormindo no chão, em triciclos, na beirada do rio. Mas não estava preparado para o homem sem camisa, que me detém na saída do mercado, estendendo a mão. No passado ele sofreu queimaduras e tornou-se uma figura humana quase irreconhecível, a pele transformada numa imensa cicatriz sob a coroa de cabelos pretos. Da cintura para cima (e sabe Deus até onde), a pele é uma cicatriz só; ele não tem lábios, nem nariz, nem sobrancelha. Suas orelhas são como betume, como se tivesse mergulhado e moldado num alto-forno, sendo retirado pouco antes de derreter por completo. Mexe seus dentes como uma abóbora de Halloween, mas não emite um único som através do que foi um dia, uma boca. Sinto um murro no estômago. Minha animação exuberante dos dias e horas anteriores desmorona. Fico paralisado, piscando e pensando na palavra napalm, que oprime cada batida do meu coração”.

MAUS BOCADOS: BAD BOY E ANTROPÓLOGO ACIDENTAL

Em algum momento de Cozinha Confidencial (página 195, pela edição brasileira da Cia das Letras), Bourdain indica, desempregado antes de assinar carteira numa churrascaria, que não era sensacionalismo literário a ideia de dar cabo da própria vida: “Passava o dia inteiro na cama, paralisado de culpa, medo e remorso, o cinzeiro abarrotado de bitucas, contas sem pagar empilhadas por tudo que é canto, roupas sujas amontoadas pela casa inteira. À noite, não conseguia dormir, sentia palpitações, ondas de terror, acessos de auto-respulsa tão fortes que apena a ideia de mergulhar da janela do sexto andar direto na Riverside Drive me dava algum alívio e me permitia cair num sono resignado (...)”.

Bem menos deprimido, e ainda sob a pele de outsider, Bourdain escreveria Maus bocados (2006), o terceiro da trilogia. Talvez menos magnetizando que os anteriores, a obra sintetiza as duas personas: o bad boy (ainda) crente na tríade sexo, drogas e coc au vin com algo libertadora e o antropólogo acidental.

É o livro no qual o nova-iorquino descobre o Brasil pela boca. “O livro serviu para escoar o que não coube no programa de TV”, ele disse, à época. No volume, ele narra sua experiência com a “inebriante cozinha da Bahia”, o lugar onde a culinária brasileira tangencia a “magia”, Diz que São Paulo é terrivelmente feia, mas aprova o sanduba de mortadela do mercadão e que a comida japonesa da Liberdade é “pesada”. A chef, yabassê e, hoje também, apresentadora da TV Carmem Virgínia disse, logo após a morte do chef, que a produção de seu programa chegou a sondá-la para uma gravação no Recife. Mas a pauta não vingou.
Ele, sabemos, não foi o primeiro. A chilena Isabel Allende nos evidenciou a comida como antessala do sexo no seu clássico Afrodite. O também nova-iorquino Jefrrey Steingarten impressionou com sua capacidade didática de engolir, de pequenos venenos a moluscos de nomes impronunciáveis, com seu caudaloso O homem que comeu de tudo. Mas Bourdain rasgou a estrada. Depois de Cozinha confidencial, mais de 200 mil títulos de literatura gastronômica tomaram conta de seções inteiras de livrarias pelo mundo. E gerou clones de sua costela.

Em 2011, a nova-iorquina Gabrielle Hamilton lançou seu Sangue, ossos e manteiga - a educação involuntária de uma chef relutante. Para o próprio Bourdain, “o melhor livro já escrito por uma chef em todos os tempos”. Além de resgatar proustianamente as memórias gustativas como o carneiro assado na infância, ela vai relatando a vida dura no fogão entre mordiscadas biográficas em torno das carreiras de cocaína que cheirou ou as muitas namoradas com quem se desencontrou. Bourdain deixou inéditas algumas páginas de um romance a ser lançado. Não há notícias sobre se o material será impresso.

 

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