Se o Brasil quiser de fato homenagear o compositor com um rito à altura de sua redescoberta grandeza, já tem um espetáculo para isso: apresentado na noite da sexta (21) no palco principal do Festival de Inverno de Garanhuns, o Tributo a Belchior concebido pelo diretor artístico André Brasileiro e o agora maestro Juliano Holanda está escrito, sem pedido de favor, na gaveta de um Opinião ou um Grande Circo Místico: poucas vezes, tantos e tão gigantescos intérpretes uniram vozes pela obra de um único e não menos projeto artístico.
Na frente do palco, os filhos Michael e Camila, ao lado das tias, não continham a emoção asim que o primeiro interpértre começou a desfilar a obra do pai: uma emoção comungada com o público. Cada verso de canção era cantada pela plateia com a força de um libelo existencial.
O arcoverdense Lira abriu os trabalhos: sua expressão entre o canto e a récita deu uma dimensão ainda mais agreste à Divina Comédia Humana. A plasticidade dos arranjos desenhados por Juliano Holanda tanto reverenciavam a concepção original das canções como traziam as harmonias de Belchior para mais perto da personalidade musical da cada interpréte. Tudo outra vez, na voz argilosa de Issar, ficou como um lindo ska de temperinho original Olinda Style. Com Todo Sujo de Batom, a paraibana Renata Arruda se vestiu de diva folk. Com Galos, noites e quintais, a pernambucana Gaby da Pele Preta indicou seu potencial de musa afirmativa.
Capaz de percorrer as mais absurdas cores vocais em segundos, soprano de faca só lâmina na garganta , a paulistana Tulipa Ruiz confirmou, novamente, porque é a voz que obriga o pop brasileiro a redefinir suas respirações. Parecia convocar cada célula de eletricidade de Graanhuns ao conferir tantas camadas sonoras à pouco conhecida Passeio, uma canção que versa sobre uma geografia afetivamente personalíssima de São Paulo. Uma canção que parece ter sido feita, mais que qualquer coisa, para unir Belchior e Tulipa.
Ednardo cantava com certeza mítica Mucuripe - a canção que viu ser escrita pelos amigos Fagner e Belchior no Bar do Anísio em 1974, o quartel general da boemia musical cearense dos anos 70. Bardo rocker e filófoso de uma pós-verdade pop, o recifense Juvenil Silva que vem dando novos sentidos à obra de Belchior com sua banda dos Corações Selvagens, fez uma tradução matadora de, claro, Coração Selvagem. Com sua guitarra nervosa, propositiva e o canto seco, Fernando Catatau se apropriou de Sujeito de Sorte.
TROVÃO E APOCALIPSE
Respaldada pela musculatura de seu teclado, a dama indigna que é Cida Moreira imprimiu um arco assombrosamente épico para a aparentemente prosaica Hora do Almoço: o cotidiano descrito na letra de Belchior ganhou sopros de tragédia épica na voz que magnetiza e assusta, como trovão, de Cida.
Estrela atemporal, a veteraníssima Ângela Rô Rô fez de "Paralelas" um blues definitivamente apocalíptico. Foi altíssimo nos tons propostos pelo arranjo de Juliano Holanda e, bicho indomável que é, fechou a canção em improvisos bluesy com a força de uma reza.
Todos voltariam ainda para um novo número, cada um. E, unidos, sob a batuta de Ednardo, fizeram de Palo Seco uma prece pop e coletiva. Se o espetáculo, concebido para fechar a primeira noite de shows do maior palco, surge e o morre no Festival de Inverno de Garanhuns, cada um desse intérpretes sai dali com a certeza de que, se desejar, pode incluir com a autoridade de flor sobre espinho uma canção de Belchior em seu próximo álbum.