MINAS GERAIS

Tragédia ambiental de Mariana pode virar tragédia processual

A Justiça Federal ficou responsável por julgar todas as ações sobre crimes ambientais decorrentes do rompimento da barragem

ABr
Cadastrado por
ABr
Publicado em 04/11/2016 às 22:36
Foto: Roberto Franco/ UFMG
A Justiça Federal ficou responsável por julgar todas as ações sobre crimes ambientais decorrentes do rompimento da barragem - FOTO: Foto: Roberto Franco/ UFMG
Leitura:

Em um balanço apresentado nesta sexta-feira (4) sobre o trabalho do Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG) relacionado às consequências do rompimento da barragem de Fundão, o promotor Marcos Paulo considerou que a tragédia ambiental pode se tornar uma tragédia processual. Ele avalia que há decisões conflitantes do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES), da Justiça Federal e do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O promotor lamentou a federalização de diversas ações.

A barragem de Fundão, pertencente à mineradora Samarco, se rompeu no dia 5 de novembro de 2015, no município de Mariana (MG), liberando no ambiente mais de 60 milhões de metros cúbicos de rejeitos. A tragédia, considerada a maior do país, provocou devastação de vegetação nativa, poluição da bacia do Rio Doce e destruição dos distritos de Bento Rodrigues, Paracatu e Gesteira, além de outras comunidades.

Em junho, após a Samarco alegar que o TJMG não teria competência para julgar uma ação, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) foi acionado para intermediar o conflito. A Justiça Federal ficou responsável por julgar todas as ações sobre crimes ambientais decorrentes do rompimento da barragem. Já a Justiça Estadual julgaria apenas ações locais e pontuais, como forma de facilitar o acesso judicial das pessoas atingidas pelo desastre ambiental.

Protelar ações

Na opinião de Marcos Paulo, a mineradora se utiliza da contestação de competência para protelar as ações. Ela e suas acionistas Vale e BHP Billiton têm atuado de forma a não favorecer acordos e decisões céleres. Um exemplo seria a recuperação urbana de Barra Longa (MG). Foram 950 hectares atingidos, que deixou 400 famílias desalojadas, além de praças, ruas e escolas destruídas. O MP-MG queria fazer um acordo extrajudicial para estabelecer um cronograma. Com a negativa da Samarco, os promotores ajuizaram uma ação. A mineradora contestou a competência e a ação acabou arquivada, pois foi considerada atribuição da Justiça Federal.

Um outro problema enfrentado pelo MP-MG tem sido a falta de unidade das empresas. Os promotores alegam que a situação os força a ajuizar diversas ações. "A Samarco é filha da Vale e da BHP Billiton e os pais aparentemente estão brigados entre si. Em cada audiência, são três escritórios de advocacia com teses distintas. Como vamos avançar se do outro lado não há sequer uma vontade única? Nós tentamos acordos e agora estamos judicializando não por opção, mas exatamente porque não nos resta outra opção", diz Marcos Paulo.

Água contaminada

O promotor Leonardo Diniz, da Comarca de Governador Valadares (MG), também relata dificuldades. A cidade capta água diretamente do Rio Doce e, após a tragédia, enfrentou problemas de abastecimento. O MP-MG ajuizou uma ação para que a Samarco fosse obrigada a abastecer o município com água potável. A Justiça determinou que mineradora fornecesse ao município caminhões-pipa e galões. Com a posterior retomada de captação no Rio Doce, os promotores solicitaram um laudo de sua Central de Apoio Técnico (CEAT) e constatou que havia parâmetros de alumínio acima dos índices legais permitidos. "A qualidade da água é imprópria. Pode causa doenças degenerativas a longo prazo", diz Leonardo Diniz.

Em dezembro de 2015, quando o MP-MG deu entrada bem uma segunda ação para obrigar a Samarco a apresentar uma alternativa de captação de água, a mineradora começou a defender a federalização dos julgamentos. "Ela tem conseguido tirar as ações civis das nossas mãos, afastando também os juízes locais dessas causas. A federalização causa o efeito de inefetividade da Justiça e nós consideramos inadequada. Os juízes que atuam próximos aos municípios onde ocorreram os danos são muito mais sensíveis às realidades da população", diz o promotor.

Leonardo Diniz também acredita a Samarco usa essas manobras judiciais para postergar as decisões. "Em Governador Valadares, em um ano, não se tem nenhuma ação efetiva por parte da mineradora. Na semana passada, nos foi apresentado um plano para captação alternativa para a cidade, usado o Rio Suaçuí, mas apenas de 50%. Como nós vamos falar para a população da cidade que metade vai continuar recebendo água do Rio Doce? Não vamos aceitar", diz.

Algum sucesso

Mesmo diante das dificuldades, o MP-MG tem obtido sucesso em algumas medidas. Na terça (1º), Instituto Estadual de Florestas (IEF) atendeu pedido dos promotores e publicou portaria proibindo a pesca em parte da bacia do Rio Doce localizada em Minas Gerais. Segundo a decisão, o objetivo é permitir a recuperação do rio e da fauna. Será permitida a pesca científica autorizada e a pesca amadora, na modalidade de pesque e solte.

As preocupações com a falta de celeridade na reparação aos danos da tragédia são compartilhadas por um grupo de especialistas independentes do sistema de direitos humanos das Organizações das Nações Unidas (ONU), entre eles brasileiros e estrangeiros. Em uma nota publicada hoje (4), os especialistas pediram ação imediata do governo brasileiro e das empresas envolvidas. Entre os problemas listados como não solucionados estão o acesso seguro à água para consumo humano, a poluição dos rios, a incerteza sobre o destino das comunidades forçadas a deixar suas casas e a resposta insuficiente do poder público e das mineradoras.

Acordo

O acordo entre a Samarco e a União, firmado em março, foi outro alvo de críticas dos promotores. O documento também tem como signatários a Vale, a BHP Billiton e os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo. Segundo os termos negociados, as mineradoras investiriam cerca de R$20 bilhões ao longo de 15 anos. Esses recursos seriam aplicados em 39 projetos e geridos por uma fundação privada criada pela Samarco. Em junho foi aprovado o estatuto da Fundação Renova.

Para fiscalizar os trabalhos, foi prevista a criação de um Comitê Interfederativo, composto por representantes do Poder Público. A estrutura está funcionando. No mês passado, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), um dos órgãos que integra o Comitê, apresentou um balanço parcial dos trabalhos e reconheceu atrasos nas obras para contenção dos rejeitos.

Na terça-feira (11), o Ibama aplicou multa diária a Samarco de R$500 mil por não tratar o rejeito no Dique S3 e não concluir as obras de ajuste no prazo determinado. O dique S3 é uma das estruturas que visam evitar que mais rejeito de minério alcance a bacia do Rio Doce no período chuvoso.

Sem validade judicial

Apesar do acordo estar sendo implementado, ele ainda não tem validade judicial. Em maio, a Justiça Federal chegou a homologá-lo. Após contestação do Ministério Público Federal (MPF), a homologação foi suspensa em agosto. A validade do acordo ainda será avaliada novamente pela Justiça Federal. Paralelamente, tramita uma ação do MPF que estima em R$155 bilhões os prejuízos.

"O acordo é uma forma de blindar as empresas. Eles mesmo definem o que é compensatório e o que é reparatório", critica o promotor Carlos Eduardo Pinto. Segundo o promotor Mauro Ellovitch, os termos acordados não são efetivos, pois não há metas e cronogramas. "Ele prevê aportes anuais futuros a serem gastos da maneira que a fundação [criada pelas] empresas bem entender", diz. Ele alega que o acordo não teve impacto nenhum nas medidas que estão sendo tomadas pela Samarco. "Até agora, todas os feitos da Samarco, da Vale e da BHP Billiton se deram após ajuizamento de ações e eventualmente em acordos judiciais celebrados com o MP-MG".

As ações dos promotores teriam sido responsáveis, por exemplo, por forçar a mineradora a fazer os estudos das consequências do rompimento e as análises das estruturas remanescentes, as ações para conter vazamento de lama que ainda estava sendo carreada, a atualização dos planos de emergência, os simulados nas comunidades que próximas às barragens, a dragagem da Usina de Candonga. "Seria muito simples ajuizar uma ação genérica ou fechar um acordão abstrato garantindo a compensação de R$50, R$100 ou R$200 bilhões em tese. Mas nossa busca é por resultados. Nossas ações são objetivas, com pedidos específicos e com cronogramas factíveis", diz Mauro Ellovitch.

Além do dano ambiental

Para o promotor Marcos Paulo o episódio vai além da tragédia socioambiental. "É a maior tragédia em relação ao patrimônio cultural de Minas Gerais. O ponto onde houve o rompimento é uma das localidades mais antigas do estado. Mariana foi a primeira capital mineira. Toda aquela região está permeada de pequenos povoados que surgiram principalmente no período do ouro. Há diversos templos do século 18 que foram varridos, peças sacras de artistas renomados que se perderam, casarões, sobrados e pontes, são centenas de bens", diz.

Segundo dados da Samarco, foram resgatadas 1.925 peças sacras. Marcos Paulo acha que há muito mais submerso na lama. Ele destaca ainda outros prejuízos. A folia de reis, o congado e as celebrações da semana santa, que compunham o patrimônio imaterial das comunidades, correm risco de acabar. A estrada parque Caminhos da Mineração, criado em 2008 por Lei Municipal de Mariana, tinha o objetivo de promover a integração turística dos distritos de Bento Rodrigues e Camargos. "A maioria dos pontos turísticos que justificaram a criação desse roteiro foram destruídos".

Os danos ao patrimônio espeleológico também seriam inestimáveis. Cinco cavernas teriam sido totalmente destruídas, além de antigas minas, muros de pedra do tempo dos escravos e grutas. No final do mês passada, o MP-MG ingressou com uma ação civil pública contra a Samarco, a Vale e a BHP Billiton por danificarem diretamente cinco cavernas subterrâneas, que foram totalmente soterradas. O MP-MG pede que as empresas sejam obrigadas a restabelecer, no prazo de 24 meses, todo o ambiente espeleológico, além da indenização de R$ 100 milhões pelos danos ambientais e R$50 milhões pelos danos sociais e extrapatrimoniais.

Últimas notícias