UNIDADES PRISIONAIS

Juiz diz que prisões de Manaus não estão entre as piores do país

''Tem local no Brasil que o agente penitenciário nem entra no pavilhão. É o preso que tem a chave'', disse o titular da Vara de Execuções Penais do Amazonas

Estadão Conteúdo
Cadastrado por
Estadão Conteúdo
Publicado em 16/01/2017 às 8:48
Divulgacao/Seap
''Tem local no Brasil que o agente penitenciário nem entra no pavilhão. É o preso que tem a chave'', disse o titular da Vara de Execuções Penais do Amazonas - FOTO: Divulgacao/Seap
Leitura:

O juiz titular da Vara de Execuções Penais do Amazonas, Luis Carlos Valois, estava de folga em casa, com a família, descansando no primeiro dia do ano. Responsável por processos da maioria dos presos do Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em poucas horas, seu dia de folga se transformou na pior experiência de sua vida.

“A minha própria capacidade de ver o ser humano está atingida. Porque aquela monstruosidade foi cometida por um ser humano. Se o ser humano tem aquela semente dentro dele, todos nós temos. É uma coisa que faz a gente pensar”, diz o juiz. Ter se deparado com a cena de corpos mutilados e uma caixa de membros, entregue pelos próprios presos na porta da penitenciária, afeta o juiz até hoje. “Fiquei dois dias sem dormir depois daquilo. Até hoje não durmo direito”.

Matança em Manaus chocou o Brasil e o mundo

Apesar da matança no Compaj ter chocado o Brasil e o mundo, Valois conta que o sistema penitenciário de Manaus está longe de ser um dos piores do país, tamanha a gravidade em outros locais, inclusive no interior do Amazonas. “O sistema penitenciário de Manaus é igual ao do Brasil inteiro. Superlotado, com pouca assistência. Talvez não esteja nem entre os dez piores. Porque tem local no Brasil que o agente penitenciário nem entra no pavilhão. É o preso que tem a chave. Agora, o interior do Amazonas é idade média”.

O juiz teve seu nome envolvido na Operação La Muralla 2, da Polícia Federal, que investiga um suposto esquema envolvendo o Poder Judiciário para beneficiar integrantes de facções criminosas. Dizendo-se “quase arrependido de ter ido ajudar” no dia da rebelião, o magistrado se defende. “O juiz da execução deve zelar pelo direito dos presos. E quando um preso manifesta respeito para com o juiz, a sociedade acha que o juiz tem alguma coisa com esses presos. Esse é um equívoco muito grande”.

Agência Brasil: Como você ficou sabendo da rebelião?

Luis Carlos Valois: Às 22h o próprio secretário de segurança, que nunca me ligou na vida, me ligou dizendo que o negócio estava muito sério, que já havia cinco reféns e que ele precisava da minha presença lá. Eu tava em casa com o meu filho e recebi uma ligação da Secretaria de Administração Penitenciária, de um funcionário que estava querendo a minha presença na Anísio Jobim porque estava havendo uma rebelião. Eu disse que não ia, que eu estava de recesso e que chamasse o juiz plantonista. Isso foi às 19h. Às 22h, o secretário de segurança me ligou e eu concordei em ir.

 

Agência Brasil: E qual foi sua participação nas negociações?

 

Luis Carlos Valois: Depois que eu cheguei não houve mais nenhuma morte, tinham todos morrido já, mas ainda havia cinco reféns. Quando encontramos com os presos, vieram dois, mas só um falou. Ele veio com um papelzinho com reivindicações. Era pedindo para que a polícia de choque não batesse neles, não entrasse, que não houvesse transferência para a penitenciária federal, que mantivesse a rotina no presídio. Apenas reivindicações relacionadas à própria rebelião. A rebelião não tinha nenhuma reivindicação, isso é um fato. Por esse motivo as autoridades policiais chegaram à conclusão de que a rebelião foi feita para a chacina, e não [que a chacina foi] consequência da rebelião. Foi objetivo da rebelião.

 

Agência Brasil: Como foi a liberação dos reféns?

 

Luis Carlos Valois: Eu disse 'olha, eu só vou ler esse papel se vocês soltarem pelo menos três reféns. Porque eu quero saber se vocês estão querendo dialogar mesmo'. Isso foi orientado pela polícia. Quando soltaram, marcamos um outro encontro, por volta de 4h. As reivindicações eram tão frágeis... Eles estavam querendo ganhar tempo. Eles concordaram em soltar os reféns, mas disseram que só fariam isso às 7h da manhã. Quando disseram isso, o secretário de segurança falou que não ia ficar dando moral pra preso. Ele me levou em casa e às 7 da manhã a polícia estava na porta da minha casa de novo.

 

Agência Brasil: Qual cenário você encontrou no Compaj de manhã?

 

Luis Carlos Valois: Às 7h a polícia me levou para a penitenciária de novo. Nessa hora, os carros do Instituto Médico Legal (IML) estavam na porta. Os presos mesmo tiraram os corpos todos de dentro da penitenciária e colocaram na porta de entrada. Alguns já estavam nos carros do IML, mas não comportavam todos os corpos. Tinham muitos corpos ainda na porta. Corpo esquartejado, sem cabeça, carbonizado. Tinham dois corpos carbonizados, como se tivessem morrido abraçados, e uma caixa cheia de braço, perna, cabeça. Um negócio dantesco, horrível. Eu vi porque eu fui receber os reféns. Os reféns estavam saindo e a polícia de choque entrou. Aí eu voltei para casa e não participei de mais nada.

 

Agência Brasil: Como o senhor ficou depois disso?

 

Luis Carlos Valois: Como estou ainda: muito chocado. A minha própria capacidade de ver o ser humano está atingida. Porque aquela monstruosidade foi cometida por um ser humano. Se o ser humano tem aquela semente dentro dele, todos nós temos. Será [que temos]? É uma coisa que faz a gente pensar. Fiquei dois dias sem dormir depois daquilo. Até hoje não durmo direito. Vou dormir só às 3h, 4h da manhã.

 

Agência Brasil: Recentemente, o senhor foi citado na imprensa por uma suposta ligação com a facção Família do Norte (FDN), dominante no Compaj.

 

Luis Carlos Valois: O juiz da execução deve zelar pelo direito dos presos. E quando um preso manifesta respeito para com o juiz, a sociedade acha que o juiz tem alguma coisa com esses presos. Esse é um equívoco muito grande. Estou sendo suspeito de trabalhar, e não de estar ligado com preso. Se aquela penitenciária fosse do PCC [Primeiro Comando da Capital, facção rival da FDN], eu seria respeitado pelos presos do PCC. Não interessa de que sigla é a penitenciária. Para mim preso é preso. Eu não permito que nenhum tenha regalia diferente do outro e a maioria deles não é de facção. E se a maioria me respeita, os presos que, por acaso, se dizem de facção, têm que me respeitar também, senão eles saem perdendo com isso. Porque eu estou lá para ajudar, fazer os direitos deles valerem.

Agência Brasil: Como é o Compaj por dentro?

Luis Carlos Valois: O compaj tem cela feita pra oito, com 30 dentro. Gente dormindo debaixo de uma cama de cimento. E no calor de manaus. Já tem estudos de criminologia que dizem que o calor é um índice de criminalidade. Imagine em manaus.

Agência Brasil: Qual sua opinião sobre o sistema penitenciário do estado?

Luis Carlos Valois: O sistema penitenciário de Manaus é igual ao do Brasil inteiro. Superlotado, com pouca assistência. Talvez não esteja nem entre os dez piores. Porque tem local no Brasil que o agente penitenciário nem entra no pavilhão. É o preso que tem a chave. O agente pede para buscar fulano lá. Tem presídio no Brasil que é assim. Agora, o interior do Amazonas que é idade média. Tem estabelecimento penal no interior que tem mulher com homem, criança com adulto. Se você for investigar o interior do estado, você vai ver prisão de piso batido. O interior do Amazonas é coisa de outro mundo.

Últimas notícias