História

Museu em cemitério de escravos do Rio em crise por corte de verbas

O museu, erguido sobre uma enorme cova repleta de ossos que ainda devem ser exumados, atraiu 70.000 visitantes até o ano passado

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Publicado em 13/05/2017 às 13:04
Foto: Yasuyoshi Chiba / AFP
O museu, erguido sobre uma enorme cova repleta de ossos que ainda devem ser exumados, atraiu 70.000 visitantes até o ano passado - FOTO: Foto: Yasuyoshi Chiba / AFP
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Quando Merced Guimarães encontrou pilhas de ossos humanos sob o piso de sua casa, na zona portuária do Rio de Janeiro, durante uma reforma, acreditou que havia se deparado com evidências de um assassino em série.

Ficou preocupada, inclusive, que a Polícia pensasse que ela havia cometido os assassinatos. Apavorados, os pedreiros que faziam a reforma fugiram. Mas, o que descobriu na realidade foi algo muito mais terrível: que sua casa foi erguida sobre os restos do maior cemitério de escravos das Américas.

Este encontro acidental com a história, ocorrido em 1996, transformou a vida desta mulher alegre e cheia de energia, hoje com 60 anos. Ela cedeu aos filhos o controle de seu primeiro negócio familiar e, em vez de transformar sua casa em um lar confortável, fez dela um museu.

Queria criar um "testemunho vivo de um crime contra a humanidade". Finalmente, conseguiu fazer isso em 2005, quando abriu o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos.

O museu, erguido sobre uma enorme cova repleta de ossos que ainda devem ser exumados, atraiu 70.000 visitantes até o ano passado. Apesar do êxito, o Instituto está prestes a fechar por falta de dinheiro.

A Prefeitura do Rio cortou os subsídios em meio à dura recessão e na sequência dos Jogos Olímpicos, e o Instituto luta para pagar as contas de luz ou comprar produtos de limpeza.

Mas, em última instância, o problema é mais profundo, afirma Guimarães: os brasileiros simplesmente não querem enfrentar sua "vergonha nacional".

História oculta

Chegaram 10 vezes mais escravos no Brasil do que nos Estados Unidos - quase cinco milhões - antes da abolição da escravidão, em 1888, sendo o último país das Américas a fazê-lo. Este grande tráfico deixou o Brasil com a maior população negra fora da África e uma rica herança musical e cultural.

Mas raramente se discute o lado obscuro da escravidão, enquanto os esforços para honrar suas vítimas são notáveis por sua ausência.

A parte antiga do porto do Rio já foi o coração do negócio de escravos. Os barcos atracavam ali, os chamados "pretos novos" eram colocados em quarentena e os sobreviventes eram vendidos. Com os vestígios físicos desaparecidos ou enterrados, a história se perdeu para todos, menos para os especialistas.

A descoberta na casa de Guimarães do que se acredita que sejam dezenas de milhares de restos humanos e a descoberta, em 2011, não muito longe do museu, do cais do Valongo para navios de escravos, não foram suficientes para curar a amnésia.

Muitas escolas e estudantes visitam o Instituto, mas o público em geral quase não o conhece e é apenas um ponto no mapa turístico do Rio de Janeiro.

"O governo brasileiro não tem, e nunca teve, interesse nestes assuntos. O problema não é a atual crise financeira. Isso foi assim durante anos", afirma Antonio Carlos Rodrigues, secretário-geral do museu. "É racismo", reforça Guimarães. Durante anos, ela financiou o projeto com sua própria empresa de controle de pragas.

Posteriormente, em 2013, um fundo criado para a renovação urbana do Rio antes dos Jogos Olímpicos lhes concedia 9.000 reais mensais para seus custos operacionais.

Neste ano, o governo do Rio, praticamente quebrado, suspendeu a ajuda, deixando o instituto com fundos suficientes para operar até julho, afirma Guimarães. "Depois teremos que fechar por um período indefinido".

Uma solução óbvia ao problema do financiamento do museu é que comece a cobrar entrada dos visitantes, mas isso é impensável, acrescenta Guimarães. "Não é certo cobrar das pessoas para que vejam um crime".

"As crianças da casa"

Os visitantes do museu podem ver um curto documentário e artefatos como um ferro para marcar a fogo os escravos. Mas os fragmentos de ossos, as tíbias e crânios fraturados têm um impacto autêntico.

Está documentado que a fossa comum foi utilizada de 1769 a 1830. Mas ninguém sabe realmente quantas pessoas jazem ali: as estimativas mais conservadoras calculam o número em 50.000, segundo o arqueólogo Reinaldo Tavares, voluntário da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Geralmente, os ossos eram queimados e esmagados para abrir espaço e a tarefa de catalogá-los é extremamente lenta, explica Tavares.

Na semana passada, ele encontrou um esqueleto completo de uma mulher. Jaz estirada, com a boca aberta, como em um pranto silencioso e interminável. Leticia Valdetaro, uma menina de 12 anos que foi ao museu em uma visita escolar, classifica de "irreal" o que viu.

"Sinto-me muito mal realmente, fico envergonhada", afirma. "Isso aconteceu no nosso país". Independentemente do que ocorrer com o museu, Guimarães nunca abandonará seus inesperados coabitantes. Foram jogados como lixo, diz, enquanto enxuga uma lágrima. Mas, para ela, "são crianças, crianças aqui na casa, na nossa casa".

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