CRISE

Pobreza e fome fazem venezuelanos comerem do lixo

Cerca de 9,6 milhões de pessoas - quase um terço da população - comem duas ou menos vezes por dia

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Publicado em 08/03/2017 às 16:39
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Cerca de 9,6 milhões de pessoas - quase um terço da população - comem duas ou menos vezes por dia - FOTO: Federico PARRA / AFP
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O caminhão de lixo freia e Rebeca corre até o contêiner para fuçar os sacos. É a sua luta diária contra a fome, que leva muitos venezuelanos a viverem de restos de comida.

Antes que os resíduos sejam triturados, vasculha avidamente e encontra um pouco de macarrão. Rebeca León tem 18 anos, está terminando o ensino médio e vive no bairro popular de Petare, em uma casa que, apesar da miséria, conta com os serviços básicos.

Um filho de dois anos desnutrido, uma mãe com deficiência e semanas "à base de água" a levaram, há seis meses, a percorrer as ruas de zonas ricas para buscar comida no lixo.

"Minha mãe não aceitava, mas o que mais se pode fazer com a situação ruim do país? Ia morrer de fome, dava para ver os ossos dela", conta à AFP.

Sua rotina é angustiante. Estuda à tarde, e depois do colégio vai direto caçar caminhões coletores de lixo e revirar sobras em restaurantes, de onde tira restos de frango, pão, peixe ou queijo. 

Dorme na rua e volta à casa de manhã para limpar o que recolheu e descansar, para depois continuar fazendo a roda girar.

"Vivemos de lixo"

Esta jovem deixou a vergonha de lado para sobreviver a uma crise onde a escassez atinge 68% dos produtos básicos no país e a inflação cresce descontroladamente - segundo o FMI, chegará a 1.660% em 2017. 

"Chorava, porque me sentia humilhada. Já não me importa, porque se você não trabalha nem procura algo no lixo, você não come", disse, enquanto aguardava um caminhão que nunca chegou.

Cerca de 70 pessoas, entre elas várias crianças, esperam com Rebeca os caminhões coletores, e repartem o controle das lixeiras de restaurantes. 

Rebeca revira as sobras de uma marisqueira de Altamira. Perto dali, em um estabelecimento de fast food, um homem foi esfaqueado recentemente em uma briga por um saco de lixo, conta um funcionário.

Nesse lugar, José Godoy, pedreiro desempregado de 53 anos, lambe ansioso um prato descartável. Suas duas filhas, de seis e nove anos, bebem suco retirado de um pote. Estão anêmicas, e comem apenas bananas ou iúca uma vez por dia. 

"Uma noite fomos dormir sem comer. Não desejo isso a ninguém. As crianças choravam e diziam: 'tenho fome'. Vendi as ferramentas, tudo, e por último saí às ruas. Milhares de nós vivemos de lixo", relata José.

Cerca de 9,6 milhões de venezuelanos - quase um terço da população - comem duas ou menos vezes por dia. A pobreza aumentou quase novo pontos percentuais entre 2015 e 2016, atingindo 81,8% dos lares, enquanto 51,51% estão em situação de pobreza extrema, segundo a Pesquisa sobre Condições de Vida. 

O estudo, realizado por um grupo de universidades, revelou também que 93,3% das famílias não têm renda suficiente para comprar alimentos, enquanto sete em cada dez pessoas perdeu em média 8,7 kg de peso no último ano.

"Eu era gordo, e olhe só agora, estou magrinho. Tive que tirá-la do colégio porque não podia dar comida para ela levar", disse Godoy, apontando para uma das filhas.

Desmaiar de fome

A nutricionista Maritza Landaeta, coautora da pesquisa, afirma que 10% das pessoas em situação de pobreza extrema (cerca de 1,5 milhão) comem alimentos doados por familiares, do lixo ou de sobras de restaurantes, expondo-se a doenças.

O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, assegura que em 2016 a pobreza no país caiu de 19,7% para 18,3%, e a miséria de 4,9% para 4,4%, apesar da queda do preço do petróleo, que é praticamente a única fonte de renda do país. 

O governo chavista, que atribui a escassez a uma "guerra econômica", lembra que as Nações Unidas reconheceu, em 2015, seus esforços no combate à fome, e que seu programa de venda de produtos subsidiados em zonas populares - criado há um ano - beneficiará seis milhões de lares em 2017.

No entanto, essas sacolas de alimentos só chegaram duas vezes à casa de Rebeca, onde uma geladeira quebrada serve de dispensa para proteger a comida dos ratos. 

Abatida pela noite mal dormida, pela fome e pela preocupação por não ter encontrado nada, volta ao seu bairro - o mais perigoso de Caracas. De lá, deve caminhar uma hora até a escola, onde alguns colegas chegam a "desmaiar de fome", conta.

"Não quero ficar assim", diz a jovem, que pretende estudar turismo após concluir o ensino médio. Por enquanto, se prepara para outra jornada desta luta, cujo fim está distante demais para ser vislumbrado.

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