Quando o então candidato a governador Eduardo Campos prometia em 2006 construir três hospitais para desafogar as grandes emergências do Estado, superlotadas de vítimas da violência, angariou votos e a esperança de que a saúde pudesse ser prioridade. Eleito, em três anos ele fez da promessa um fato real, incluindo uma rede extensa de unidades de pronto-atendimento (UPAs), prosseguindo depois com estruturas similares para consultas ambulatoriais especializadas (UPAEs) e espaços para internamento. Estava quase quadruplicando os serviços estaduais e inovando na forma de gerir a máquina.
Transferiu desde o início a gerência das UPAS e dos novos hospitais para organizações sociais, mais uma modalidade de parceria público-privada que acabou virando marca da gestão PSB nesses dez anos consecutivos. Entre críticas e elogios, a nova rede de saúde chega ao décimo ano de gestão socialista rodeada de desafios. Seria viável diante da crise financeira, com queda na arrecadação, e limite de gastos imposto pela União? É mesmo vantajosa para a população, que ainda é vítima de acidentes de trânsito, da violência urbana, adoece com viroses transmitidas por mosquitos, e enfrenta a epidemia de microcefalia? A rede terceirizada acaba saindo mais cara que administrar diretamente os hospitais? Fortalece ou funciona na contramão do SUS, já que emprega sem concurso, não tem conselho gestor com participação popular e não está interligada à rede municipal?
Há um mês, o Tribunal de Contas do Estado abriu auditoria especial para esclarecer por que a rede operada pelas organizações sociais recebe mais recursos do que os grandes hospitais estaduais juntos e com maior complexidade de serviços. A Promotoria da Saúde do Ministério Público Estadual também quer esclarecer os critérios de avaliação dos serviços prestados pelas OSs. Sem pagamento em dia, hospitais metropolitanos diminuíram vagas de internamento e desativaram serviços. No Miguel Arraes, em Paulista, 29 leitos na traumatologia e nove da terapia intensiva foram fechados. No Pelópidas Silveira, no Curado, o primeiro hospital do SUS no País de neuro e cardiologia, a neurocirurgia foi desativada, segundo os médicos. Empregados dessas unidades reclamam de atraso nos salários. Ambos são administrados pelo Instituto de Medicina Integral Fernando Figueira, que gerencia a maior parte da rede colocada à disposição de terceiros e já mencionou risco de colapso, em razão de débitos do Estado e do SUS.
Nos últimos anos, o Imip passou a cobrar do governo solução para o grande problema financeiro em que as OSs se transformaram. Em setembro de 2015, a instituição calculava em R$ 2,2 milhões por mês o déficit dos três hospitais metropolitanos construídos por Eduardo. Nas 11 UPAs, o rombo variava entre R$ 37 milhões e R$ 386 milhões mensais.
Em agosto daquele ano, em ofício ao governador Paulo Câmara, o Imip alertou que a grave crise financeira das unidades geridas por OS poderia “pôr em risco a saúde e a vida dos pacientes”. Dois meses depois, a instituição avisou ao secretário estadual de Saúde, José Iran Costa Júnior, que se o Estado não regularizasse os pagamentos, seria necessário paralisar integralmente os serviços ou devolver a administração de hospitais e UPAs.
Membros do Conselho Estadual de Saúde ainda acusam o governo de desconsiderar decisões sucessivas do colegiado, inclusive uma tomada em 2015 que pedia o fim dos contratos com as organizações sociais.
Dependente da rede, os usuários se dividem entre aprovação e reclamação. Essa última tornou-se mais frequente nos últimos dois anos, quando as UPAs passaram a reduzir a quantidade de médicos nos plantões e a restringir atendimentos de trauma e pediatria. “Não é preciso criar novos serviços. Basta abastecer de médico e remédio os que já existiam, como os antigos hospitais e os postos de saúde”, diz a diarista Tânia Maria do Nascimento, 53, depois de passar oito horas esperando atendimento numa UPA para a mãe de 77 anos, diabética e que sentia moleza e dores no corpo.
Sem dinheiro, o governo não consegue mais expandir a rede cara e, nos municípios onde as unidades foram construídas e estão fechadas por falta de dinheiro, a sensação da população sem médicos é de vergonha. Em Goiana, Mata Norte, uma UPAE está pronta desde o final de 2015, sem atender a população. “Isso é um desperdício. Uma UPA aqui faria muita diferença. Os postos de saúde fecharam. No hospital, falta médico”, se queixa o borracheiro Arísto Faustino Marinho, 42. Em Abreu e Lima, Grande Recife, faz dois anos que a UPAE foi concluída, mas tapumes feitos com placa de metal ainda isolam a unidade do povo porque quando foram retirados, homens pularam a cerca para roubar a fiação; mesmo com vigia dia e noite.
VALORES CHAMAM ATENÇÃO
A conta que chamou a atenção do Tribunal de Contas é a mesma que intriga representantes de usuários e trabalhadores do SUS no Conselho Estadual de Saúde. Em 2014, as organizações sociais que administravam nove hospitais de médio porte (os três metropolitanos e seis no interior), 14 UPAs e nove UPAs de especialidades (UPAEs) receberam da Secretaria Estadual de Saúde R$ 709,2 milhões, mais do que o dobro do destinado pela SES aos seus seis grandes hospitais de gestão direta do governo, entre eles Restauração e Getúlio Vargas, de altíssima complexidade. Hoje, mais um hospital e UPA integram essa rede.
Ao defender a auditoria, a conselheira Teresa Duere, relatora das contas de 2014, alertou para a necessidade de o Estado repensar a parceria com as organizações sociais. Em quatro anos, de acordo com a análise técnica do tribunal, as unidades de saúde geridas por OSs subiram de 14 para 32. Recentemente esse número saltou para 34, com a transferência da gestão do Hospital Regional de Arcoverde ao Hospital Tricentenário, que já administra os Hospitais João Murilo (Vitória) e Mestre Vitalino (Caruaru). Quase metade dos repasses feitos às organizações fica com o Imip Hospitalar, que gerencia o maior volume de serviços.
O contrato com as UPAs custa mensalmente pouco mais de R$ 1 milhão e previa atualizações que deixaram de ser feitas entre 2014 e 2015. “A situação foi revista. Hoje, temos apenas um déficit de R$ 4 milhões a ser coberto, referente a atendimentos feitos na UPA do Ibura e no Hospital João Murilo, de Vitória”, cita Gil Brasileiro, que dirige o Tricentenário. “Há quem pensa que as organizações recebem uma fortuna. Isso não é verdade. Nós é quem bancamos nossa folha de pessoal”, lembra.
As organizações estão se mobilizando para defender o modelo terceirizado, divulgando as vantagens para o SUS, seja na agilidade na hora de comprar materiais, contratar pessoal e gerenciar o serviço. “Em Arcoverde, recuperamos o hospital e estamos fazendo mais de 300 partos por mês”, diz, apontando a alta produtividade. Nos relatórios de avaliação das OS, a Secretaria Estadual de Saúde aponta o grande número de atendimentos feitos nos hospitais e UPAS.
Mas a Promotoria da Saúde do Ministério Público Estadual está intrigada justamente com os critérios utilizados pelo Estado para medir o desempenho das OSs. Abriu investigação para esclarecer se a baixa permanência dos doentes significa de fato que a assistência foi devidamente prestada. A promotora Ivana Botelho se diz preocupada também com o modelo terceirizada por causa do grande volume de recursos na mão de agentes privados. “O processo começou errado, faltando clareza sobre o que é responsabilidade do Estado e da organização social”, diz.
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Um documento enviado ao Ministério Público pelo Estado mostra que em 2015 foram fechados 36 leitos de UTI na rede de administração direta do estado e 29 nos hospitais geridos por OSs. Nos primeiros, o problema foi a falta de recursos humanos. Nos demais, o déficit financeiro. Dos 36, 29 já foram reativados. E dos administrados por terceiros, a previsão é reabri-los em março deste ano.
O Ministério Público Federal já recomendou que o Estado reabra todos os leitos fechados entre 2014 e 2016 em todos os hospitais, mesmo que geridos por OSs. Também não deve mais fechar vagas ou exonerar profissionais de saúde sob pretextos orçamentários. Um inquérito civil que tramita na Procuradoria da República em Pernambuco apura o fechamento deliberado de leitos, emergências e Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) em hospitais estaduais e a ausência de transparência na aplicação de recursos do SUS por parte da Secretaria Estadual de Saúde.
O mesmo procedimento também apura possíveis irregularidades no repasse de verbas vultosas às entidades beneficiárias de subvenções sociais em detrimentos com os gastos direcionados à rede própria de saúde.