ZERO PUNIÇÕES

Um ano após aborto legal no Recife, parlamentares que tentaram impedir procedimento em criança vítima de estupro não sofreram punições

O caso ocorreu em um domingo, 16 de agosto de 2020, e foi protagonizado por grupos religiosos e deputados das bancadas evangélicas da Câmara do Recife e da Assembleia Legislativa.

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José Matheus Santos

Publicado em 18/08/2021 às 10:00 | Atualizado em 18/08/2021 às 10:18
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Um ano depois do aborto legal realizado no Recife, a Câmara de Vereadores e a Assembleia Legislativa de Pernambuco não abriram processos em comissões de ética contra vereadores e deputados que foram ao Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), unidade de saúde do bairro da Encruzilhada, tentar impedir a realização do procedimento em uma menina de 10 anos vítima de estupro do próprio tio.

O caso ocorreu em um domingo, 16 de agosto de 2020, e foi protagonizado por grupos religiosos e deputados das bancadas evangélicas da Câmara do Recife e da Assembleia Legislativa. Eles ficaram na área externa do Cisam com bate boca e desrespeito às regras de distanciamento social e isolamento na pandemia.

Segundo a legislação brasileira, o procedimento ocorreu de forma legal. O aborto é previsto em caso de vítimas de estupro, como foi o caso, e de fetos anencefálicos e em casos de risco á vida da grávida.

As manifestações contrárias ao aborto legal começaram comandadas pela deputada estadual Clarissa de Tércio (PSC). Ao lado dela, estavam naquele dia o vereador Renato Antunes (PSC) e o deputado estadual Joel da Harpa (PP). Na sequência, chegaram o deputado estadual Cleiton Collins e a vereadora Michelle Collins, ambos do PP. E, por último, a ex-deputada Terezinha Nunes (MDB). Em defesa do procedimento da garota, Carol Virgolino, codeputada do mandato Juntas (PSOL), foi acompanhada de representantes de entidades de defesa da mulher.

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O estupro da menina aconteceu na cidade de São Mateus, no norte do Espírito Santo, a 215 quilômetros de Vitória, capital do estado. A Justiça do Espírito Santo autorizou o procedimento, e a criança foi transferida para realizá-lo no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), no Recife, após o atendimento ser negado em uma unidade de referência do estado do Sudeste. As despesas foram custeadas pelo governo do Espírito Santo.

O procedimento foi comandado pelo médico Olímpio Barbosa, que foi alvo de xingamentos dos manifestantes contrários ao aborto legal em frente ao Cisam.

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Representações

Após a repercussão nacional do caso, os parlamentares envolvidos foram alvos de representações nas Casas Legislativas.

O mandato coletivo Juntas pediu ao Conselho de Ética da Assembleia Legislativa que abrisse processo por quebra de decoro parlamentar contra os deputados estaduais Clarissa Tercio e Joel da Harpa e a cassação dos dois parlamentares. Até hoje, o conselho de ética sequer realizou sessão sobre o assunto.

De acordo com o documento das Juntas, o deputado Joel da Harpa quebrou "o decoro parlamentar ao obter irregularmente informações sigilosas sobre a criança - o que colocaria segurança da menina em risco; ter feito barulho em frente ao Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam/UPE) e obstruído a entrada de emergência, além de ter tentado forçar com violência a entrada na instituição".

“O Deputado Joel da Harpa não só convocou as pessoas a estarem lá, como ele mesmo esteve presente. Em muitos vídeos e fotos (anexo 2) pode ser visto o representado sem máscara perto de outras pessoas, mesmo com a Lei nº 16.968/2020 vigente em nosso Estado que obriga o uso de máscaras durante a pandemia”, afirmaram as codeputadas, na representação.

No caso da deputada Clarissa Tércio, a quebra de decoro teria ocorrido por motivos semelhantes. Segundo a representação, a parlamentar também esteve no Cisam/UPE, tentando impedir a realização do procedimento que interromperia a gravidez da criança de 10 anos. Além de fazer barulho em frente à maternidade, a deputada também obstruiu a entrada da emergência hospitalar. Ao tentar invadir a unidade, Clarissa foi contida por um apoiador. As Juntas também citam que a deputada estava sem máscara no local, também em descumprimento da lei estadual.

“Também é possível ver em mídias que circulam pelas redes sociais (anexo 2) que em um momento a deputada Clarissa Tércio tenta invadir a força o prédio, desistindo dessa ofensiva apenas quando um apoiador seu a retirou. Ela tenta justificar o ato violento com o direito que parlamentares têm de realizarem fiscalização”, relata o texto. “Porém há de se lembrar que nos próprios vídeos que a representada divulgou em suas redes sociais é manifestado o interesse de impedir a realização do procedimento (anexo 3), assim como deve ser pontuado desarrazoado usar esse direito para poder entrar em um bloco cirúrgico em que uma menina de dez anos vítima de estupro se encontrava”, complementou o documento.

Ouvido pelo Jornal do Commercio na ocasião, o então presidente da Comissão de Ética Parlamentar, deputado estadual Tony Gel (MDB), alegou que primeiro a representação deveria ser analisada pela Mesa Diretora da Casa, para só então ser encaminhada à Comissão de Ética.

“Conversei com o presidente Eriberto Medeiros (PP), ele havia questionado a minha opinião a respeito deste caso. Não cheguei a ver os vídeos, mas tudo isso será matéria de análise. Vamos aguardar, é algo novo e que precisamos ouvir o contraditório. A Mesa Diretora recebe a representação e vai conduzi-la da melhor forma”, explicou Tony Gel, ao JC, em agosto de 2020, há um ano.

Segundo apurou o Blog com informações de bastidores da Alepe, até o momento a Mesa Diretora da Casa não deliberou pelo provimento dos processos.

Na época, o deputado Joel da Harpa rebateu as acusações apresentadas pelo PSOL, afirmando que o partido está tentando “aparecer em cima deste episódio”. “Não acredito que essa representação vai ter algum resultado, até porque não há base jurídica, o que está sendo apresentado são inverdades. Quem fez o movimento de tumulto na frente do hospital não foram os parlamentares, mas as feministas ligadas ao PSOL”.

Conselho Tutelar pediu processo na Câmara

Na Câmara de Vereadores do Recife, o Conselho Tutelar da Região Político-Administrativa 01 protocolou um pedido por punição aos vereadores Michelle Collins e Renato Antunes. Parlamentares afirmavam à época que um eventual processo "dormiria nas gavetas" da presidente da comissão de Ética, a então vereadora evangélica Irmã Aimeé (PSB), o que veio a se confirmar. Até hoje, a tramitação não fluiu. Além disso, o caso ocorreu às vésperas da campanha eleitoral, o que toma a atenção da classe política.

De acordo com o texto encaminhado à Câmara, os vereadores podem ter violado os direitos da criança que foi atendida pelo Cisam em um procedimento de aborto legal. O Conselho Tutelar reclamou que os parlamentares tentaram impedir o cumprimento da lei incitando manifestações contrárias ao direita da criança, algo que poderia ser interpretado como quebra de decoro parlamentar.

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