Por Wladmir Paulino
Palco de inúmeros casos de racismo, o futebol também tem uma longa luta contra o preconceito de raça. Alguns clubes no futebol brasileiro se destacam nessas ações por enfrentarem a intolerância justamente quando ela era mais escancarada: no início do século XX, quando as principais agremiações foram fundadas. Chegava-se ao absurdo de proibir que pessoas de cor tanto jogassem quanto comparecessem aos estádios para acompanhar as partidas. O caso clássico é o do Fluminense, que disfarçava seus atletas mulatos passando pó de arroz, fazendo surgir o apelido homônimo.
Três times foram fundamentais para a inserção dos negros no futebol brasileiro. Cada um à sua maneira, deu uma enorme contribuição para combater o racismo. No Dia da Consciência Negra vamos relembrar suas histórias.
Santa Cruz Futebol Clube (Pernambuco)
Sabe esse escudo aí em cima com o qual tanta gente se identifica em Pernambuco? Pois ele não existiria se não fosse um negro chamado Teófilo Batista de Carvalho. Atendendo pelo apelido de Lacraia, o jovem de 19 anos, além de ser um dos mentores do Santa - não estava no dia da assinatura da ata de função - criou a 'cara' do clube, cuja identidade visual apenas ganhou contornos diferentes ao longo do tempo. Além de fundador e 'designer', Lacraia também jogava bola, inclusive ele aparece na foto mais antiga conhecida da agremiação, quando as cores ainda eram preta e branca. O vermelho foi acrescentado em 1915 para a disputa do primeiro Campeonato Pernambucano, pois a Liga Sportiva Pernambucana, a FPF da época, não permitia duas equipes com as mesmas cores. A outra era o Flamengo, hoje extinto.
A presença e importância de Lacraia para o nascimento do Tricolor foi fundamental para o novo clube conquistar as camadas mais baixas da sociedade. Com os braços abertos, o Tricolor recebeu muitos negros que não eram aceitos no Náutico, Sport e América, principalmente. Essa democratização teve uma via de mão dupla que ecoa até hoje. Por abraçar quem não tinha voz, o Santa recebeu em troca uma devoção quase religiosa: foi a torcida que construiu os primeiros lances de arquibancada do estádio do Arruda e, hoje, ajuda a terminar o primeiro campo do centro de treinamento.
Club de Regatas Vasco da Gama (Rio de Janeiro)
A maior popularidade do Flamengo é inegável, mas quem lutou contra o racismo no Rio de Janeiro foi o Vasco da Gama. Em seu primeiro ano na primeira divisão do futebol do Rio de Janeiro, 1923, o clube conquistou o título recheado de negros, pardos e brancos pobres. Embora o Bangu já contasse com negros no seu elenco, a ascensão meteórica dos cruzmaltinos assustou Fluminense, Flamengo, América e Botafogo. Uma reunião da Liga Metropolitana quis impor uma regra que banisse jogadores que não tinham como comprovar que trabalhavam ou estudavam, o que atingiria não só o Vasco, que tinha 12 atletas nessas condições, mas também São Cristóvão, Andaraí e o já citado Bangu. Os considerados pequenos se rebelaram e não aceitaram a proposta, o que provocou uma cisão no futebol carioca, com os grandes saindo e fundando a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos.
Uma célebre carta escrita pelo então presidente vascaíno, José Augusto Prestes, escreveu uma carta, que, tempos depois, foi tomada como um manifesto contra o racismo no futebol do Rio de Janeiro.
Sport Club Internacional (Rio Grande do Sul)
Como seus pares no estado, o Internacional nasceu 'branco'. Os negros, segregados, fundaram uma entidade paralela, a Liga Nacional de Futebol Porto-Alegrense, conhecida popularmente como Liga dos Canelas Pretas, pois só os negros jogavam no início do século XX. As portas foram abertas pelo Inter no começo dos anos 1920, quando o meia-direita Dirceu Alves tornou-se o primeiro negro a vestir a camisa colorada. E não parou mais, depois com o clube formando grandes ídolos como Tesourinha, Escurinho, Valdomiro e Caçapava. Os gremistas que até hoje lutam para acabar com a mancha de preconceito, tinham diversas músicas com cunho racista, referindo-se ao grande rival como 'macaco' e 'macacada'.
A presença de jogadores negros no time conhecido como Rolo Compressor, nos anos 1940 associou o futebol do clube ao Saci Pererê, figura tradicional do Folclore Brasileiro popularizada na obra Sítio do Picapau Amerelo, de Monteiro Lobato. O jovem negro malandro, que engana os adversários que o time ganhara foi diretamente ligada ao Saci - some-se a isso o gorro vermelho. Informalmente, ele passou a figurar em flâmulas e até estatuetas que o Colorado entregava aos seus atletas mais destacados. No entanto, só em 2016 foi adotado oficialmente, no estatuto do clube.