No Projeto Reencontros, veja como anda Jerffeson, o goleiro fã de Rogério Ceni

Leonardo Silva
Publicado em 10/11/2019 às 12:06
Leo Motta/JC Imagem


“Eu não posso deixar a vida passar por cima de mim, feito passaram por cima da minha perna. Eu é que tenho que passar por cima de tudo. O exemplo quem tem que dar sou eu”. A frase é dita com voz e olhar firme de alguém que conseguiu dar um drible no destino e se transformou em um exemplo ao (re)aprender a caminhar na vida. Partida. Mas nunca interrompida. Prosseguida adiante por Jerffeson Lima, de 25 anos, que há 21 se recusa a se ver como deficiente e prefere se enxergar como eficiente. Apaixonado por futebol, ele se tornou goleiro e agarrou a chance de provar a todos, e a si mesmo, do que é capaz. As suas defesas, no campo de pelada e da perseverança, foram aplaudidas no Brasil inteiro através de reportagens. Hoje, o jovem continua driblando dificuldades e protegendo a meta da superação.

 

Leo Motta/JC Imagem

 

Reencontrar Jerffeson foi fácil e difícil. Seguir até o pequeno município de Ribeirão, na Zona da Mata Sul de Pernambuco, a 87 quilômetros do Recife, foi simples. O complicado foi achar novamente a casa da família dele, situada em uma área de morro da cidade, não muito bem coberta pela localização de GPS. O jeito foi tentar puxar pela memória a lembrança de uma noite do final de outubro de 2013, quando a humilde residência de cor verde desbotado foi encontrada no meio de uma ladeira de barro. No local só se chega a pé, e com certa dificuldade, devido ao terreno bem inclinado e acidentado. Imagina, então, com uma perna só? Foi o que se pensou, na época e no retorno. Nas duas oportunidades, ao se bater palmas na frente da casa, de lá de dentro surgiu Jerffeson saltitando com sua marca inconfundível: o sorriso. Tão largo quanto o coração.

Na primeira vez, a cena foi inusitada e improvável. A equipe de reportagem do Sistema Jornal do Commercio de Comunicação (SJCC) viaja pelo interior gravando uma série de reportagens multimídia sobre a Copa do Mundo do Brasil, do ano seguinte, tendo como foco pessoas vítimas de preconceito. A “Copa do Meu Mundo” mostrou a importância do futebol para alguns grupos de excluídos. Cada município tinha um diferente. Na região de Ribeirão, o desafio era contar histórias de deficientes. Todavia, mesmo com a pesquisa prévia, até a noite em que a equipe chegou à cidade o tal personagem ideal ainda não havia sido encontrado. Sem muitas opções (e quase sem esperança), só restou fazer uma última tentativa de busca presencial mesmo. A equipe foi até uma escola pública e lá perguntou se alguém conhecia uma pessoa com este perfil. “Eu já vi um menino com uma perna só jogando num campinho. Posso dizer onde ele mora”, assegurou uma funcionária do local. Foi assim que há seis anos a equipe do JC se deparou com aquele sorriso na frente da casa humilde.

Dentro da residência, no reencontro este ano, os sorrisos se multiplicaram no bate-papo. Se fecharam brevemente apenas no momento de relembrar o acidente quando tinha quatro anos. Por ironia do destino, o mesmo futebol que o salvou quase o matou. No começo da manhã daquele 19 de fevereiro de 1997, Jerffeson batia bola ao lado de uma estrada de barro, enquanto a mãe estava lavando roupa em um rio do outro lado da rodagem. “Fui jogar com meus amigos, mas quando atravessei de volta não olhei para os lados. Aí eu só senti a pancada. Quando abri os olhos já estava debaixo do caminhão. Na hora que olhei pra baixo, vi minha perna direita esmagada que nem um bagaço de cana”, lembrou Jerffeson, com um raro semblante sério, recordando que foi socorrido para o hospital onde teve a perna amputada.

 

Leo Motta/JC Imagem

 

Além da falta do membro inferior, ele começou a sentir também o preconceito. “Na escola me chamavam de Saci Pererê, perninha, aleijado. Isso doia muito, me magoava. Mas eu coloquei na cabeça que eu ia provar o meu valor”, contou. Foi então que o são-paulino roxo e fã de Rogério Ceni (ex-goleiro tricolor e hoje técnico do Fortaleza), resolveu, com uma perna só, seguir os passos do ídolo. No início encontrou resistência. Aos poucos, provou que a sua condição física não era impedimento para agarrar bem. A prova material disto se encontra plastificada e pregada na parede do seu estreito quarto. A página do Jornal do Commercio com a reportagem “Defesa dos (d)eficientes”, publicada no dia 22 de abril de 2014. “Ela mudou a minha vida. Na rua, pessoas que antes nem olhavam pra mim me paravam pra tirar foto. Até autógrafo eu comecei dar!”, contou, com o sorriso de sempre.

Jerffeson nem imaginava, mas conquistou também uma fã de muito longe. A filha do então presidente do São Paulo viu a matéria e mandou como presente para o garoto uma caixa repleta de produtos do clube, entre eles uma camisa autografada de Ceni. A entrega rendeu uma nova matéria “Um chute de superação”, capa do JC no dia 8 de junho do mesmo ano. “Foi muito emocionante. Nunca imaginei que um dia eles iam saber que eu existo e ainda mais mandar presentes”, recordou. Meses depois, a TV Globo pediu o contato de Jerffeson para fazer matérias e através delas ele foi até São Paulo, onde realizou o sonho de conhecer seu ídolo. O Sport, em parceria com uma empresa de próteses, ainda doou uma perna mecânica ao jovem, no entanto o equipamento quebrou.

O ano de 2014 foi realmente mágico para Jerffeson. Mas a vida, ele também aprendeu, teve que continuar. Os obstáculos permaneceram. É somente com o salário-mínimo que recebe como pensão que sustenta a casa onde mora com a mãe, desempregada. Até chegou a iniciar a sonhada reforma, mas sem recursos não conseguiu concluir. Apenas com o ensino médio completo, tentou várias vezes arranjar emprego, mas só fez bicos em lava-jato, oficina, padaria, e há quase um ano não arruma serviço.

Apesar das dificuldades, não cogita se desfazer dos seus sonhos. Dos que já foram realizados e dos que ainda não. “Uma vez um cara, que passou de carro do lado do campo, me reconheceu. Chegou em mim e ofereceu R$ 5 mil pela camisa autografada de Ceni. Eu agradeci, mas disse não. Não tem dinheiro no mundo que compre o presente de um ídolo. Eu tenho fé que ainda vou realizar meus outros sonhos. Quero um dia quem sabe defender o Brasil em uma paraolimpíada. Também fazer cursos como design em games ou pinturas litográficas”, projetou.

Enquanto isso, Jerffeson continua quase todo dia a bater bola com os amigos no mesmo campinho de terra, localizado entre as duas faixas da BR-101, bem na entrada de Ribeirão, onde foi “descoberto”. A descoberta na verdade foi feita pelo próprio Jerffeson. A do sentido da vida que, apesar das dores, deve sempre ser celebrada. Como um gol. “No futebol, eu me sinto completo. Não sinto falta de uma perna quando estou em campo. Mesmo sem ela eu jogo melhor do que muita gente. Tudo eu agradeço a Deus e ao futebol. Eu sou perfeito. E não deixo nada, nem ninguém me provar o contrário”, defendeu o goleiro onde mais gosta de estar: entre traves, sem entraves.

 

Leo Motta/JC Imagem

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