ADOÇÃO

KLARA CASTANHO: Brasil tem três entregas voluntárias para adoção por dia. Saiba como funciona o processo legal

De 2020 a maio de 2022 foram registradas 2.734 entregas - um número que poderia ser maior, se houvesse mais informação para as mães e menos estigma sobre a decisão

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Katarina Moraes

Publicado em 28/06/2022 às 10:04 | Atualizado em 29/06/2022 às 0:15
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Com informações da Estadão Conteúdo
 
Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostram que três crianças são entregues voluntariamente para adoção por dia no Brasil, um processo legal que ganhou visibilidade na última semana após a atriz Klara Castanho ter sido exposta na internet. De 2020 a maio de 2022 foram registradas 2.734 entregas - um número que poderia ser maior, se houvesse mais informação para as mães e menos estigma sobre a decisão.
 
Klara, de 21 anos, foi vítima de estupro, descobriu a gestação de forma tardia e procurou a Justiça para garantir que a criança fosse adotada por outra família, enfrentando todos os trâmites necessários para isso. No entanto, supostamente uma enfermeira do hospital onde fez o parto divulgou a informação a jornalistas, que publicada contra a vontade da jovem. Por isso, no último sábado (25), a atriz foi à público contar tudo o que aconteceu.

Entrega é legal. A divulgação dela, não

 

A entrega voluntária é um procedimento legal, não configura crime, nem abandono. Já a divulgação dessa informação, como ocorreu com Klara, é proibida. Apesar de legalizado e apoiado pelos Tribunais de Justiça, mulheres que optam pela entrega voluntária sofrem constrangimentos e pressões para desistir da ideia. Desde 2017, uma lei federal deixa clara a possibilidade de que uma grávida manifeste interesse em entregar o filho para adoção. Esse direito deve ser garantido em qualquer circunstância e não depende de ter sido vítima de violência ou não ter condições econômicas.
 
Não há dados sobre o perfil das mulheres que realizaram entrega voluntária no Brasil, mas juízes e assistentes sociais afirmam que é comum receber mulheres que já têm algum tipo de informação sobre o procedimento. A comunicação sobre a intenção de entrega voluntária pode ser feita pela grávida na Vara da Infância e da Juventude ou a qualquer serviço público, como hospitais, escolas e conselhos tutelares.
"Muitas chegam com informação porque procuraram, pesquisaram. Podem ter sido vítimas de abuso sexual e encaminham para a entrega porque quando chegam ao serviço já não conseguem o aborto", diz Angélica Gomes, assistente social do Tribunal de Justiça de Minas e assessora técnica de serviço social da Associação Nacional de Grupos de Apoio à Adoção. "Às vezes universitárias, bebês de relacionamentos extraconjugais."
 

Como funciona o procedimento?

 
Se a Vara da Infância já foi informada sobre essa decisão, deve comunicar ao hospital provável de nascimento para que também se prepare para acolher a gestante. Ela tem o direito de não amamentar nem ver o recém-nascido. Caso a manifestação de interesse de entregar a criança ocorra apenas na hora do parto, a maternidade deve acionar a Justiça para garantir que a entrega aconteça de forma legal. O bebê é encaminhado para acolhimento, enquanto a genitora confirma em audiência a intenção de entregar a criança. Só então o bebê é levado à família adotiva.
 
O processo visa a evitar situações chamadas de "adoção à brasileira", quando um recém-nascido é entregue de forma irregular a uma família que se passa pela biológica. Segundo Silvana do Monte Moreira, presidente da Comissão de Adoção do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam), ainda é comum que profissionais de saúde façam essa intermediação irregular, fora do olhar da Justiça. O problema disso é que nem sempre a família que recebe uma criança nessas condições está preparada ou tem boas intenções. Já as cadastradas na Justiça para adotar passam por cursos e avaliações psicológicas.
 

Iniciativa evita abandonos

 
A entrega voluntária também ajuda a evitar situações de abandono de bebês. Segundo a juíza Samyra Remzetti Bernardi, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e integrante do Fórum Nacional da Infância e da Juventude do CNJ, hoje no Brasil são oito crianças abandonadas por dia - número maior, portanto, do que a de entregues regularmente à adoção.

Julgamento é barreira para decisão

 
A entrega voluntária encontra resistências. Nem todos os profissionais que atendem a mulher tratam essa situação como um direito, diz Silvana. "Sempre que possível, as pessoas tentam insistir para que a mulher fique com o rebento indesejado". Para ela, há um "mito" do amor materno que impede de tratar esses casos sem julgamentos. O CNJ documentou em relatório deste ano tentativas de demover as genitoras da decisão de entregar a criança para adoção. Em um dos casos, um conselheiro tutelar argumentou a uma mulher que "onde come um, comem dois".

Em outra situação, uma mulher havia tentado fazer um aborto, sem sucesso, e pediu sigilo sobre a decisão de entregar a criança para a adoção, mas o nascimento foi relatado à família por uma médica. Também ocorrem sugestões para que a mulher amamente contra a vontade. Mulheres de cidades pequenas buscam outros municípios para a entrega, a fim de garantir sigilo. "Elas têm medo do julgamento", diz Angélica.
 

Falta de formação e de pessoal são gargalos

 
Além dos julgamentos à mulher, a entrega voluntária para a adoção enfrenta gargalos técnicos. O atendimento à grávida ou à mulher que acabou de dar à luz deveria ser rápido e contar com equipe multidisciplinar, o que nem todas as localidades têm. Varas que não são exclusivas para Infância e Juventude vivem o desafio de priorizar esses casos em meio a processos de outras naturezas também urgentes, diz Hugo Zaher, juiz da Infância e Juventude de Campina Grande (PB) e presidente do Fórum Nacional da Justiça Protetiva.
 
Há também a necessidade de formação para profissionais de saúde, conselheiros e demais envolvidos no atendimento à mulher para conhecerem essa possibilidade e encaminhar os casos. Maternidades, por exemplo, devem estar preparadas para atuar caso uma mulher manifeste a intenção de entregar a criança para a adoção no momento do parto. Juízes relatam alta rotatividade de equipes, o que dificulta a formação dos quadros para lidar com essas situações.
 

Tribunais orientam a sociedade

 
Tribunais de Justiça em todo o País têm feito palestras e cartilhas de orientação à sociedade. Uma resolução em debate no CNJ visa a dar uniformidade aos procedimentos de entrega voluntária e detalhar questões relacionadas à capacitação de profissionais e às formas de atendimento à mulher quando ela é encaminhada a uma Vara da Infância e Juventude. O texto recebeu quase 300 sugestões e ainda será votado.

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