Quem circula pelo bairro de Afogados, na Zona Oeste do Recife, mal consegue distinguir a Vila dos Ferroviários, ali construída há mais de 60 anos. Com raras exceções, as casas passaram por reformas e perderam os traços comuns que davam o ar de vila às habitações. Mudou a arquitetura, mas a memória dos trilhos continua impregnada nas moradias, ocupadas por ferroviários aposentados, viúvas de maquinistas e filhos de contadores da antiga RFFSA.
No portão de uma dessas casas, na Rua Amaro Duarte, Jurandir Sabino dos Santos, 68 anos, esperava pelo marido, na juventude. “Ele viajava muito, ia em todo lugar onde tinha linha férrea, Campina Grande, Maceió, o interior de Pernambuco. Às vezes, passava até 20 dias fora”, lembra Jurandir, viúva de Manoel Lino dos Santos, maquinista da Rede durante 43 anos.
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Originalmente, a Vila dos Ferroviários era composta de 99 casas, agrupadas em quatro ruas: Bezerra da Palma, Amaro Duarte, Antônio Justino e Manoel Padilha. Cinco imóveis tiveram de ser derrubados no decorrer das obras de implantação do metrô, conta Jurandir, moradora do lugar há 44 anos. A vila fica entre a Estação Ipiranga e a Rua 21 de Abril.
Construída para os guarda-freios – profissionais que vigiavam e manobravam os freios de carros e vagões na linha férrea –, a vila acabou sendo liberada pela RFFSA para outras categorias. “A Rede cedia as casas para o pessoal da ativa e descontava o valor do aluguel no salário”, diz ela. Antes da extinção da empresa estatal, as famílias tiveram a opção de comprar os imóveis.
“As casas eram redondinhas, com um batente alto na frente”, recorda Jurandir, referindo-se à parede em formato de arco do terraço, ainda existente em três residências da Rua Manoel Padilha. Numa delas vive Amâncio José da Silva, 76, escriturário aposentado da RFFSA. “Moro aqui há 64 anos, meu pai trabalhava de servente na Rede. Eu entrei quando ele se aposentou”, diz.
Amâncio José mostra a coberta da casa, de telha francesa, aquela em formato quadrado, da época da inauguração da vila. “São originais”, avisa. Uma das filhas do ex-ferroviário acrescenta que a mãe nunca quis tirar o arco do terraço.
Arco, portas e telhado projetados pela RFFSA também são mantidos por Rafaela Diógenes de Souza, 45, filha de um antigo contador da Rede Ferroviária. “Meu pai era de Mossoró (RN) e foi transferido para o Recife. Cheguei aqui com seis anos de idade”, declara. Uma das alterações feitas na casa é a troca do cimento queimado por cerâmica no piso da sala.
As casas eram redondinhas, com um batente alto na frente
diz Jurandir Sabino, moradora da Vila dos Ferroviários
A vila faz parte da história da linha férrea na capital pernambucana, assim como a Estação Central, construída de 1850 a 1856, no bairro de São José, para atender a Estrada de Ferro Central de Pernambuco; e a Estação do Brum, no Bairro do Recife, de onde partiam os trens da Great Western of Brazil Railway para a Zona da Mata Norte, no fim do século 19. A Estação Cinco Pontas, em São José, com locomotivas até Canhotinho, no Agreste, foi demolida em 1969 para permitir a construção do viaduto sobre a Avenida Sul.
Restaurada, a Estação Central vai reabrir este ano como espaço cultural, expondo o acervo do Museu do Trem. A Estação do Brum, recuperada em 1999, abriga o Memorial da Justiça. A poucos metros dali, nas dependências do Porto do Recife, uma velha locomotiva a vapor, fabricada em 1901 e comprada em 1909, para rodar na malha ferroviária do Estado, se desmancha aos poucos.
“É lamentável o que está acontecendo com a máquina”, diz o arqueólogo Nuno José de Souza Rego. Ele participou da elaboração do Inventário do Patrimônio Ferroviário em Pernambuco, contratado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), de 2007 a 2009. A locomotiva, já desgastada, entrou na lista de bens da União a serem geridos pelo Porto do Recife S/A, quando a empresa passou a ser administrada pelo Estado, em 2001.
Trilhos da estrada de ferro Recife-Limoeiro, que saía do Brum, possivelmente, encontram-se debaixo das placas de concreto da Avenida Norte, comenta o arqueólogo. Das cinco estações vinculadas à Linha Tronco Norte, nos limites do Recife, só sobrou a do Brum. A área da antiga Estação da Encruzilhada é hoje ocupada pelo Mercado Público do bairro, diz o arquiteto Luis Moriel, integrante da equipe responsável pelo inventário do Iphan.
Usada em poucas ocasiões, como as viagens do Trem do Forró, a Linha Tronco Sul teve trechos de suas margens ocupadas por 1,2 mil famílias pobres do bairro de São José, há sete meses. Eles viviam em casas alugadas e não tinham mais condições de pagar pela moradia. A via férrea, com início na Estação Cinco Pontas, corre paralela à Avenida Sul, por trás de um muro. Lixo, mato e restos de tábua cobrem os trilhos.
Nessa mesma linha, gerenciada pela concessionária Transnordestina Logística, uma locomotiva desativada enferruja ao sol e à chuva.