Quem vê o sorriso largo e a mesa farta de Marilene Ferreira, 52 anos, não imagina a luta que a levou até a propriedade de nove hectares onde vive com a mãe, o marido e o filho em Tracunhaém, na Zona da Mata Norte de Pernambuco. A agricultora faz parte das 300 famílias que ocuparam as terras da Usina Santa Tereza em 1997 e protagonizaram um longo e violento período de conflito por reforma agrária na região. Durante cerca de nove anos, o grupo contou com o apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT) Regional Nordeste 2, que completa nesta segunda-feira (13) 30 anos de atuação em Pernambuco e outros três Estados. Uma parceria que, para camponeses como Marilene, significa algo de valor inestimável: liberdade.
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Filiada à CPT Nacional e vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a CPT Nordeste 2 nasceu em um auditório no Seminário Arquidiocesano, em João Pessoa, na Paraíba, em 1988. Dias antes o então Arcebispo do Recife e Presidente do Regional NE2 da CNBB, Dom José Cardoso Sobrinho, conhecido por seu conservadorismo, havia desautorizado a Assembleia e destituiu a equipe central do setor Pastoral da CNBB NE2. Ali, os então membros da pastoral decidiram se filiar à CPT Nacional, já existente desde 1975.
A CPT NE2 acompanha hoje a luta de 300 comunidades em mais de cem municípios dos Estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. Ao todo, são 13.822 famílias e 69.110 pessoas amparadas. O objetivo é fortalecer a organização e a articulação dos grupos; apoiar a construção de territórios livres e autônomos; acompanhar os conflitos agrários e denunciar os impactos causados pelo latifúndio às comunidades.
O trabalho é fundamentado na Teologia da Libertação, corrente do Cristianismo que combate práticas vistas como injustas sob os pontos de vista social, político e econômico. “Nossa Igreja está ao lado dos pobres. Estamos a serviço do povo do campo para ajudá-los a compreender a realidade e questioná-la sempre. Por isso, celebramos nesses 30 anos nossa esperança rebelde. Porque uma teologia que não liberta, não é teologia”, argumenta o padre Tiago Thorlby, escocês radicado no Recife e membro da CPT Nordeste 2 desde sua fundação. “Não ficamos na sacristia esperando que o povo chegue até nós. Vamos aonde quer que o camponês esteja doendo.”
HISTÓRIA
A ocupação em Tracunhaém foi uma das que mais marcaram a história da Pastoral da Terra em Pernambuco. Hoje as terras da Usina Santa Tereza são divididas em três assentamentos: Nova Canaã (entregue em 2003), Chico Mendes e Ismael Felipe (ambos entregues em 2005). Marilene, que é natural de Igarassu, no Grande Recife, e vem de família camponesa, estava lá quando tudo começou. “Começamos ocupando o Engenho Taquara. Dias depois, o arrendatário chegou com seus capangas atirando pra tudo o que era lado. Era cada tiro de 12 que a poeira levantava. Depois do primeiro despejo, a gente foi para a margem da pista, no (Engenho) Papicu. Ali sofremos muito com a truculência da polícia, que era mandada pelo diretor da usina”, lembra a agricultora.
Mais de 20 famílias viveram no local, entre conflitos, por aproximadamente sete anos. “Tudo o que a gente tinha estava ali. As casas eram de taipa, mas já eram cobertas. A gente tinha igreja e escola, vivia do que plantava. Lembro que quando os policiais chegavam destruíam tudo. Eu mesma plantei mais de 40 mil pés de inhame e não colhi um sequer”, relata.
Após o despejo, as famílias foram obrigadas a viver às margens do Engenho Prado. “Foi a pior fase. De um lado, tinha a pista, de outro uma cerca, do outro uma área que pertencia ao quartel de Aldeia e do outro um lixão. Era muito bicho, todo mundo adoecendo. E o pior é que a gente não podia plantar. Por isso, viveu dois anos de doação. A CPT nos ajudou muito nesse momento”, registra Marilene.
Os despejos também não saem da cabeça do agricultor Severino Francisco Rodrigues, 37. Ele integrou o primeiro grupo que conseguiu a posse da terra no Assentamento Nova Canaã, em 2003. “Atacaram meu assentamento quando eu já tinha emissão de posse. Saí de casa para ajudar os irmãos que ainda estavam na luta e quando voltei encontrei minha mulher colocando tudo dentro de um saco.” Hoje, Severino e a família vivem da terra. Plantam macaxeira, batata, inhame, milho. Para ele, nada disso seria possível sem a ajuda da Comissão Pastoral da Terra. “Digo sempre que temos duas mães: a mãe Terra e a CPT.”
Para o padre, a missão ainda está longe de um fim. “Só vai acabar quando houver paz para homens e mulheres de boa vontade. Enquanto isso, vamos trabalhar mais 30 ou 300 anos se for necessário.”