Cidadania

Escorregou tá dentro: oito anos de uma obra que não acaba

Enquanto habitacional se arrasta, 176 famílias aguardam em condições insalubres

Margarette Andrea
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Margarette Andrea
Publicado em 21/12/2018 às 7:36
Felipe Ribeiro/JC Imagem
Enquanto habitacional se arrasta, 176 famílias aguardam em condições insalubres - FOTO: Felipe Ribeiro/JC Imagem
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Desde que nasceram, Herisson Gabriel, de 7 anos, Ana Beatriz, 5, Luíza, 3, e Miguel, 1 ano, deveriam morar em um apartamento na Avenida Maurício de Nassau, no Cordeiro, Zona Oeste do Recife, com direito a saneamento, janelas, quartos para dormir, área para brincar. Em vez disso, estão crescendo em condições insalubres na comunidade Escorregou tá dentro, em Afogados, à margem do poluído Canal do ABC, que funciona como esgoto das 176 moradias construídas à sua volta. Isso porque a obra do conjunto residencial que deverá receber 96 dessas famílias se arrasta desde 2009, quando foi assinado convênio entre o Governo do Estado e a Caixa Econômica Federal.

Muitas das crianças mostram cicatrizes das quedas no canal. Uma rotina, pois a calçada que separa as casas da água é bastante estreita, chega a uns 30 centímetros em alguns pontos. “Eu fiquei dodói quando caí, tenho medo”, diz a pequena Luíza, 3, filha de Joyce Xavier Baraúna, 21. “Ela engoliu água, teve que ser internada, quase morreu”, relata a mãe, que mora em uma casa pequena e estreita (cerca de dez metros quadrados), de apenas sala e banheiro, com dois filhos e mais seis pessoas. O imóvel está em obra, vai ganhar um primeiro andar.

Além de ampliar a casa para cima, a outra alternativa encontrada por alguns moradores tem sido usar palafitas dentro do curso da água, modelo criticado por muitos, uma vez que contribui para reter o lixo no canal, que costumeiramente, na maré alta, já transborda e alaga os imóveis. Mas como as crianças crescem e novas famílias são formadas, o jeito é arrumar mais espaço ou se mudar.

Foi o que fez o filho de Maria da Conceição da Silva, 59, e Josias Oliveira, 53. “Chegamos há 36 anos e criamos nosso filho aqui. Mas quando ele casou disse que não ia criar o dele nesse local. Graças a Deus ele é trabalhador, tem 23 anos, e pôde se mudar, só falta a gente”, relata ela. “Esse canal fede, tem muito rato, barata, escorpião, até jacaré já apareceu por aqui. Eu já pulei nele muitas vezes para salvar gente que cai”. A casa deles sequer tem janela. Um mezanino é usado como quarto, mas Maria diz que tem sido cada vez mais difícil subir a escada.

FALTA DE OPÇÃO

A líder comunitária Soraia Leite, 52, revela que quando falaram em invadir as margens do canal, há mais de 30 anos, foi uma felicidade. Ela morava em uma boa casa na Mustardinha, bairro vizinho, mas quando o marido morreu não tinha condições de pagar aluguel e sustentar os dois filhos, o mais velho com apenas 1 ano. “Não era isso que eu sonhava para eles, mas ainda sou privilegiada, minha casa fica na ponta, não alaga”, diz.

O filho mais novo de Soraia teve três filhos. “A de 11 anos caiu dez vezes nesse canal, a de 7 anos, sete vezes e o de 4 anos, quatro vezes”, contabiliza a mãe das crianças, Bruna Correia, 26. Algumas crianças dizem que já perderam o medo e hoje entram no canal para nadar. Não há espaço para lazer. A não ser os “puxadinhos” do passeio com tábuas de madeira.

“Quando lembro que montaram palco aqui e fizeram a maior festa para lançar esse habitacional chega dá uma tristeza, muita gente já morreu sem ver esses apartamentos”. Ela diz que o último contato que teve com a Secretaria de Habitação foi em abril “Disseram que estava faltando recursos. Como assim se estava tudo aprovado?”

No início, as casas eram de madeira, hoje são todas de alvenaria. Os próprios moradores fizeram gambiarras para levar água e energia para os imóveis. “As contas chegam, mas tem gente que não paga. As empresas não fizeram nada, depois de pronto vem cobrar?”. Ela e outros moradores também se queixam do preconceito. “Tem gente que fica com medo até de parar para socorrer alguém quando é preciso. Mas aqui a gente dorme de porta aberta”.

NOVO PRAZO

A partir do próximo mês, as obras devem ser normalizadas, segundo o secretário de Habitação do Estado, Bruno Lisboa. Ele explica que está sendo feito o distrato do contrato com a construtora responsável e a segunda colocada na licitação vai assumir o trabalho. A nova previsão de conclusão do habitacional, que passa por sucessivos adiamentos, é agosto de 2019.

“A obra estava indo muito devagar, então negociamos com a empresa e ela pediu para sair. Uma nova licitação seria um processo muito traumático”, afirma. O valor de investimento é de R$ 7.037.358,60, sendo R$ 3.156.802,27 de repasse do Governo Federal e R$ 3.880.556,33 de contrapartida do Estado. Conforme a secretaria, desde iniciado o serviço, em 2012 (a previsão era de seis meses), já foram gastos pouco mais de R$ 5 milhões.

O habitacional tem seis blocos, totalizando 96 apartamentos de 42 metros quadrados. Cada um com dois quartos, área de serviço, sala, cozinha e banheiro. Quanto as outras 80 famílias da Escorregou tá dentro que não serão contempladas por essa obra, a secretaria diz que vem “trabalhando para garantir uma solução de moradia” para elas. Com um déficit habitacional de 285,2 mil domicílios, o Estado entregou, entre 2015 e novembro deste ano, 10.441 unidades e mais de nove mil estão em andamento, segundo a pasta.

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