Muito antes da expressão “fake news” se popularizar o recifense já sofria as consequências de acreditar em notícias falsas. Uma palavra é suficiente para trazer à memória dos pernambucanos uma das maiores fake news da história do Estado: Tapacurá. O boato que assustou muita gente, virou livro e teve até direito a um “revival” completa 44 anos neste domingo (21).
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Depois de deixar muita gente em pânico em 1975, a segunda edição de “Tapacurá estourou!” aconteceu no dia 5 maio de 2011. Em menores proporções e até com uma pitada de bom humor, mas deixando novamente o alerta da força que um boato pode ter.
O Rio Tapacurá é um afluente localizado na margem direita do Capibaribe. Ao chover muito, os rios transbordam e a água invade a cidade. Enchentes em consequência de chuvas fortes são um roteiro conhecido pelo Recife e foi por causa disso, inclusive, que se deu a construção da barragem de Tapacurá, em 1973. A obra foi uma das providências do governo para conter o problema da invasão de água na cidade.
Por que o recifense acreditou que Tapacurá havia estourado?
Mais do que contar o que houve no dia que ecoava pelos quatro cantos da cidade o alerta de “Tapacurá estourou!”, o jornalista Homero Fonseca se debruçou sobre a missão de interpretar o fato. Por uma perspectiva que analisou principalmente o comportamento social, ele observou que pessoas assustadas e traumatizadas com as cheias estavam suscetíveis a cair no boato em questão. A população do Recife, castigada e traumatizada por uma enchente no final de semana que antecedeu a segunda-feira do boato, era o alvo perfeito para cair na notícia falsa.
“Eu trabalhava na sucursal do Estadão, que ficava na Rua Gervásio Pires. Estávamos na redação, eu e meus companheiros de trabalho, discutindo sobre a cobertura da cheia do final de semana - o balanço de vítimas, prejuízo, essas coisas de pauta. Foi quando ouvimos um barulho grande na rua, uma gritaria enorme e nós descemos. Era gente pra burro, correndo com os olhos “abuticados”. Perguntei a uma mulher que passava correndo o que tinha acontecido e ela disse ‘Tapacurá estourou’. Pensei ‘Lascou!’. Nessa hora fiquei um pouco assustado, pensei em correr para Olinda, que era alto, quando Carlos Garcia, chefe da sucursal e mais experiente, disse ‘Epa! Calma aí gente!’ Vamos confirmar esse negócio’. Então assistimos um pouco a correria e fomos apurar o que estava acontecendo”, contou.
O trabalho de apuração e ligação para órgãos como a Defesa Civil de Pernambuco, Governo do Estado e Corpo de Bombeiros constatou a verdade: nada havia acontecido na Barragem de Tapacurá. A pauta se tornou então a cobertura de um boato. “Claro que o boato só podia surgir porque houve uma cheia dias antes. Sem a enchente não haveria essa crença na possibilidade de a barragem estourar e a água invadir a cidade”, justificou.
Homero foi mais a fundo, se questionando como algo daquele tipo poderia surgir. Reuniu material durante alguns anos, leu sobre psicologia social, pesquisou, entrevistou pessoas que viveram o momento do medo generalizado e psiquiatras. O resultado foi o livro “Viagem ao Planeta dos Boatos”, lançado em 1996 e, reeditado em 2011, como “Tapacurá - Viagem ao Planeta dos Boatos”, quando ganhou um novo capítulo graças a um novo episódio de pânico no Recife por conta de novas notícias falsas sobre o estouro da barragem.
>>> O livro de Homero Fonseca, "Tapacurá - Viagem ao Planeta dos Boatos"
Onde você estava naquele dia?
O assunto que completa 44 anos neste domingo costuma aparecer nas rodas de conversa do recifense. Todo mundo já ouviu alguém contar uma história do que viveu no dia 21 de julho de 1975 ou até mesmo tem uma história para contar deste dia. Dulce Chacon, 79 anos, funcionária pública aposentada, por exemplo, tem uma história que preenche os pré-requisitos do episódio: muita chuva, correria e trauma.
“Eu morava no bairro da Madalena, já era casada, tinha duas filhas pequenas e trabalhava no edifício JK, na Avenida Dantas Barreto. Houve uma cheia e a gente foi embora para a casa do meu irmão, que morava em Boa Viagem, depois outra cheia. Um dia, eu estava trabalhando e meu marido ligou para mim, dizendo que eu descesse porque ele já estava no carro com as meninas e um monte de coisa e tinha um boato na cidade que Tapacurá tinha estourado e ia acabar com tudo. Eu desci 15 andares pelas escadas, era uma loucura, o povo descendo correndo e dizendo “Tapacurá vai estourar! Tapacurá vai estourar!”. Fomos novamente nos abrigar na casa de meu irmão e o que se via na rua era gente apavorada, correndo com as trouxas na cabeça sem saber o que fazer, acidentes de carro, um cenário de fim de mundo”, lembra. “Depois fomos tranquilizados pela TV e pelo rádio de que era apenas um boato. Mesmo assim, eu não quis voltar a morar na Madalena. Nos mudamos para Boa Viagem, onde moro até hoje”, completou Dulce.
Tapacurá, o retorno.
O período de chuvas no Recife sempre flerta com o surgimento do boato clássico. Em 2011, porém, ele voltou a de fato assustar muita gente. Já na era da internet e das redes sociais, “Tapacurá estourou nos Trending Topics”, como escreveu, na época, a jornalista Teta Barbosa, 45, em seu antigo blog, o Batida Salve Todos. Para ela, inclusive, a reedição do boato teve uma pegada de brincadeira e bom humor afinal, o Recife pode ter o título de maior cidade boateira em linha reta, mas tem também o de cidade da resenha.
>>> O texto de Teta Barbosa na íntegra: Fica, vai ter boato!
“Faz parte da ‘gréa’, o recifense gosta da ‘gréa’! Acho que o primeiro foi um boato de verdade, causou pânico, mas o segundo foi uma grande tiração de onda. É verdade que há um trauma muito grande e toda vez que chove rola um pouco de ‘Cuidado! Vai ter maré alta…’ e naquele, em 2011, teve até uma história de Carpina que, meu Deus do céu, ninguém nem sabia que tinha uma barragem em Carpina”, lembra com bom humor.
“Foi justamente o que contei no texto. Eu morava em Aldeia e estava indo trabalhar. Meu pai, que tem um pânico da história porque viveu o primeiro boato e correu pra casa para buscar minha mãe, aquela confusão toda, me ligou. ‘Volte para casa pelo amor de Deus!’. Quando eu voltei, fiquei sem ter o que fazer em casa e fui olhar o Twitter. Na época não existiam memes, mas eram como se fossem memes. No Twitter tinham tantas frases engraçadas, que eu fui anotando e cito várias delas no texto. Eu tinha um blog de moda, mas eu sempre escrevi bastante e os meus textos estavam ficando cada vez maiores. Inclusive, os de moda. Este sobre Tapacurá fui eu em Aldeia, sozinha, sem ter o que fazer, lendo o Twitter e tomando vinho”, completou.
O encontro de 1975 com 2011 e o perigo que as fake news representam
Homero Fonseca e Teta Barbosa, jornalistas que escreveram sobre um dos boatos mais famosos do Recife, concordam que fake news são muito perigosas. Destacam o paradoxo da má informação em tempos de informação excessiva e até como o fenômeno influenciou a última eleição para presidente do Brasil.
“Acontece uma grande falta de informação no meio de tanta informação. As pessoas, de uma maneira geral, desde o caso de Tapacurá até hoje, não se aprofundam do assunto. Não perguntam: o que foi que aconteceu? Quando? Aonde? Essa informação veio de onde? Apesar de estarem ‘lendo mais’, porque estão lendo coisas de Twitter, Facebook e Instagram, as pessoas leem a foto e já deduzem toda a história pelas fotos. Cai no boato, menina!”, afirma Teta.
Inclusive, cair em boato não é um “privilégio” do Recife. “Não é só o recifense, não. Isso faz parte da coletividade humana. Nós estamos vivendo momentos políticos complicados no mundo e tem gente que acredita nas fakes news não só no Recife, mas no Brasil inteiro e isso teve influência em uma eleição presidencial. Essa tendência das pessoas de acreditarem em conspirações e coisas alarmantes é muito grande. Quando é favorecida, há um fato novo, a fake news é produzida em massa, tem a intenção de confundir, de mistificar as pessoa, é uma arma poderosa e perigosíssima, como aconteceu nas últimas eleições presidenciais. Ou seja, se aproveita da situação dessas pessoas em situação de crise, de desalento, de medo”, reforça Homero.