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As mestras: mulheres comandam o baque do maracatu

Elas quebraram a hegemonia dos homens e estão à frente dos batuqueiros. Com o apito nas mãos, fazem história no Carnaval

Ciara Carvalho
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Ciara Carvalho
Publicado em 07/02/2020 às 18:48
Foto: Leo Motta/JC Imagem
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Dez anos separam as histórias de Joana e Karen.

O ano era 2008, quando Joana D’ark da Silva Cavalcante assumiu a regência do baque da Nação do Maracatu Encanto do Pina, ocupando o lugar do pai, Mestre Manoel. Tornava-se ali a primeira mestra de uma nação de maracatu de baque virado de Pernambuco e, até onde se sabe, do Brasil. Enfrentou resistência pesada. Vários batuqueiros homens, há anos tocando na nação, se negaram a ser regidos por uma mulher. Abandonaram o maracatu.

Joana é mestra há 12 anos. Fundou um maracatu só de mulheres e está ajudando a transformar pela cultura a vida dos moradores da Comunidade do Bode, na Zona Sul do Recife, berço do Encanto do Pina. Karen ainda reluta em aceitar o título, tamanho o peso e o simbolismo da função. De tanto ouvir o avô dizer que “uma mulher jamais poderia ser mestra”, prefere afirmar que recebeu o aval dos orixás apenas para comandar e colocar o maracatu na rua. Cada uma a seu tempo, as duas já fizeram e fazem história no Carnaval de Pernambuco.

Pula para 2018.

Com a morte do Mestre Afonso, Karen Adrielly Aguiar de Souza se viu com a missão de continuar o legado do avô, à frente do Maracatu Leão Coroado, com sede em Olinda e o mais antigo em atividade do País. Mal havia completado 18 anos quando aceitou o apito e a enorme responsabilidade de reger os batuqueiros de um maracatu com 157 anos de história. Causou estranhamento. Foi igualmente confrontada por antigos batuqueiros homens, que também não aceitaram a regência de uma mulher e saíram do grupo.

Dez anos separam as vivências de Joana e Karen. Mas ouvir a jovem líder falar do difícil processo de aceitação que ela enfrenta hoje é voltar uma década no tempo. Com 41 anos, Joana tinha 29 quando assumiu o baque do Encanto do Pina. Ela conta que, apesar de os orixás terem indicado que caberia a ela seguir com a missão do pai, não foi fácil convencer os homens (e até muitas mulheres) de que ela merecia o título. “Quem nasce dentro do contexto da favela, da periferia, sabe que a questão do machismo é muito naturalizada. Essa discussão, esse diálogo, não chegava na favela, principalmente antigamente. A gente cresce com a visão de que mulher é para obedecer ao homem. E eu cresci dessa forma. A mulher não pode tocar porque é o espaço do homem. Mas, com o tempo, eu vi que isso era puro machismo. Porque eu já fazia tudo, ajudava meu pai no maracatu. Ia só assumir uma função, que é o baque. O apito. Comandar a percussão. E essa foi a revolta deles”, recorda Joana.

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Quando ela assumiu, até a religiosidade do maracatu foi questionada. “Disseram que era uma nação que não tinha fundamento, que não tinha axé, porque era uma mulher que estava à frente do baque. Gente até de outros maracatus dizendo que mulher nasceu para rodar saia e não ficar com o apito. Eu me assustei. Mas sempre que os búzios eram consultados, eles indicavam para eu seguir em frente. Se, dos orixás, eu recebo a autorização, quem mais vai questionar?”, diz, assertiva.
A resposta veio em forma de resultados. Logo no primeiro Carnaval à frente do maracatu, em 2009, Joana conseguiu levar o Encanto do Pina para o grupo A. Fez mais. Criou o Baque Mulher, maracatu formado só de mulheres. E foi ali, no diálogo e na escuta dos relatos de abusos e de violência doméstica, que ela descobriu a importância de discutir o machismo dentro do maracatu e da comunidade. “Eu comecei a ficar incomodada com esses relatos. Aí pensei: a gente tem que fazer alguma coisa.”

OUSADIA

De lá para cá, ela vem quebrando vários tabus. No Carnaval do ano passado, pela primeira vez na história do Encanto do Pina, uma mulher tocou o atabaque, instrumento tradicionalmente reservado aos homens. “Para os ogans foi a maior ofensa mulher tocando timbal. Mas antes a alfaia também era proibida para mulheres e agora elas já tocam. Não há mais porque impor esses limites”, defende Joana. Novamente, a ousadia trouxe frutos. O Encanto do Pina levou o vice-campeonato do grupo especial de maracatus de baque virado que desfilam no Carnaval do Recife. Com a ajuda da comunidade e até de uma vaquinha virtual, ela também está conseguindo reformar a sede do maracatu, cuja construção estava ameaçada de ruir.

É assim, na luta e na resistência, que Karen, hoje com 19 anos, também quer manter viva a história do Leão Coroado. Está cheia de planos para fortalecer a presença do maracatu na comunidade de Águas Cumpridas, em Olinda, motivada sobretudo em transformar a realidade dos moradores da periferia. “Estamos com um projeto de ativar a sede como ponto de cultura, fazer um calendário com oficinas, reforço escolar, biblioteca, investir na questão social, ter uma creche. Isso é muito importante para gente.” Sem se dar conta, fala com a força de quem já exerce a liderança do maracatu.

“Eu já faço tudo o que o mestre faz. Mas carregar um título de reconhecimento é muito pesado. Muitas pessoas me dizem que eu posso me considerar mestra, mas eu não me vejo assim. Eu acho que eu ainda não tenho conhecimento suficiente para ser intitulada pela nação como mestra. Vovô sempre me dizia que uma mulher não podia comandar o baque. Claro que ele era filho do tempo dele. Além das tradições da nação, tinha o machismo do tempo em que ele viveu. Mas é muito difícil para mim aceitar esse título”, confidencia.

A mãe de Karen, Karina Santos de Aguiar, 39, filha de Mestre Afonso e presidenta do Leão Coroado acredita que a jovem, com o tempo, vai se sentir mais à vontade no papel. “Eu digo a ela: ‘Levanta tua cabeça e enfrenta as dificuldades’. Se ela ainda não está preparada para ser chamada de mestra, eu entendo. Mas tem que deixar as coisas acontecerem. É complicado? É. Mas eu acho que vai ser um processo natural. Eu acredito muito nos orixás e eles aprovaram o que a gente está fazendo.”

Karen e Joana não se conhecem pessoalmente. Mas a história de uma termina sendo incentivo para a da outra. “É muito bom saber que não serei mais a única mulher a subir no palco, comandando o baque de um maracatu”, comemora a mestra do Encanto do Pina.

Foto: Leo Motta/JC Imagem
Karen Adrielly Aguiar de Souza, 19 anos, que está à frente do baque do Maracatu Leão Coroado - Foto: Leo Motta/JC Imagem
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Detalhes dos adereços da Nação do Maracatu Encanto do Pina - Foto: Leo Motta/JC Imagem
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Estandarte do Maracatu Leão Coroado - Foto: Leo Motta/JC Imagem
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Sede do Maracatu Leão Coroado, em Olinda - Foto: Leo Motta/JC Imagem
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Alfaias do Maracatu Leão Coroado - Foto: Leo Motta/JC Imagem
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Karen Adrielly Aguiar de Souza, 19 anos, que está à frente do baque do Maracatu Leão Coroado - Foto: Leo Motta/JC Imagem
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Estandarte da Nação do Maracatu Encanto do Pina - Foto: Leo Motta/JC Imagem
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Detalhes dos adereços da Nação do Maracatu Encanto do Pina - Foto: Leo Motta/JC Imagem
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Joana D'ark Cavalcante, mestra da Nação do Maracatu Encanto do Pina - Foto: Leo Motta/JC Imagem

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