“Quem mataria essa criança?”
A pergunta é extrema, dura, chocante até. Ela foi formulada pelo médico Pedro Pires, obstetra e coordenador de Medicina Fetal do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), numa conversa franca sobre aborto em caso de microcefalia. Tirada do contexto, corre o risco de mais confundir do que explicar. Mas ganha relevância justamente pelo desconforto que causa. Se a legalização irrestrita do aborto no Brasil é tema urgente (embora difícil), nos casos associados à microcefalia carrega uma complexidade que esbarra numa questão real: há mais perguntas do que respostas. O esforço dos médicos em construir um padrão para a malformação dos bebês associada ao zika vírus está só no começo. Não há certeza nos diagnósticos e os limites laboratoriais ainda impedem resultados precisos. É nesse ambiente novo, onde nada é 100% seguro, que se insere a discussão do direito de escolha da mulher de interromper a gravidez.
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O questionamento feito pelo médico se apoia numa das questões centrais do debate: definir o “quando”. Em que momento essa gestação seria interrompida? Aqui surge o primeiro complicador: a comprovação do diagnóstico de microcefalia só é feita em torno de 28 semanas de gravidez, quando o bebê já está praticamente formado. “Nesse caso, tecnicamente, nem se pode falar em aborto. E como isso seria feito? Qual o médico que iria assumir essa responsabilidade?”, pontua Pedro Pires. O obstetra deixa claro que preza pela autonomia da paciente e de que a escolha deve ser, sempre, da mulher. “Ao médico, cabe informar e garantir o acesso aos serviços de saúde”, afirma. Mas ele reconhece que há entraves nos casos de bebês com microcefalia que ainda precisam ser superados. “O difícil é a seleção dos casos. Não existe um exame que vai dar esse diagnóstico preciso e tão precocemente.”
A proposta que está sendo formulada por um grupo de ativistas para ser encaminhada, nos próximos meses, ao Supremo Tribunal Federal (STF) defende o direito de a mulher abortar caso seja infectada pelo zika vírus. Não dependeria, portanto, da confirmação do quadro de microcefalia. Seria um aborto preventivo, já que ainda não há uma estatística relacionando o percentual de mulheres que, por terem contraído o vírus, vão gerar crianças com a malformação. “Estamos falando de quantos por cento de bebês possivelmente contaminados? Não sabemos ainda. Para padronizar, é preciso encontrar respostas mais precisas”, diz a infectologista Ângela Rocha, chefe do Setor de Infectologia Pediátrica do Hospital Oswaldo Cruz.
Ela chama a atenção para outro ponto que, na prática, compromete até a confiabilidade do diagnóstico de zika entre as gestantes. “Cerca de 60% das grávidas que tiveram bebês com microcefalia e que estão sendo acompanhadas no Oswaldo Cruz não apresentaram os sintomas da doença, embora elas possam ter, sim, contraído o vírus durante a gestação. Como ficaria a situação dessas mulheres?”, pondera a infectologista. Pela proposta em discussão, elas estariam fora do alcance de um possível aborto legal, uma vez que a gravidez transcorreu, aparentemente, sem os sintomas do vírus.
Por ser resultado de uma epidemia recente, a própria microcefalia, associada ao zika, ainda é uma incógnita. Não se sabe, ao certo, o grau de comprometimento que a malformação provoca nas crianças. O aumento dos casos da anomalia em Pernambuco começou a ser observado em agosto do ano passado, mas só foi associado como consequência de um fenômeno epidemiológico em novembro. São apenas seis meses. Os primeiros bebês nascidos nesse período só agora começam a ser acompanhados. Pelo menos 58 crianças no Estado tiveram a confirmação de microcefalia decorrente da infecção por zika vírus. “Ninguém sabe ainda as reais expectativas dessas crianças. Nem todas vão ter o mesmo nível de comprometimento. É preciso ter mais informações”, afirma o obstetra Carlos Reinaldo Marques.
Se a questão do aborto passa também pela qualidade de vida que o bebê terá, Carlos Reinaldo defende que é preciso ir além no debate. E incluir a possibilidade de interrupção de gravidez nos diagnósticos de outras patologias, onde o grau de comprometimento da criança é ainda mais alto do que nos casos de microcefalia. “Se a legislação vai liberar para as síndromes causadas pelo zika vírus, é preciso contemplar outras patologias ainda mais graves. Senão, vamos restringir o debate”, afirma. Na opinião do obstetra, por todas as lacunas e implicações que carrega, a discussão do aborto é válida e necessária. Mas precisa ser amadurecida. Para que o tempo ajude na busca por respostas.