O catálogo da Netflix Brasil ganhou uma obra de peso, mesmo que às vezes seu diretor não seja visto desta forma. Mademoiselle Vingança, mais novo filme do subestimado Emmanuel Mouret, chegou ao serviço de streaming na última sexta-feira (8). O cineasta francês se inspira em uma pequena história do romance Jacques, o Fatalista, e o Seu Amo, de Denis Diderot, para contar a trama de vingança de uma madame viúva contra um marquês sedutor.
Para quem já é familiarizado às suas obras passadas, irá reconhecer rapidamente em Mademoiselle Vingança o cinema autoral que o diretor vem fazendo em meio ao pastiche das mais recentes comédias e romances franceses. Humor físico de dar inveja a Jacques Tati, tons romanescos e um poderoso cinema de gestos são algumas das características das obras anteriores do francês, presentes em maior ou menor quantidade no longa.
Filme de época, humor ou drama? Definir Mademoiselle Vingança é quase impossível. Talvez um pouco de cada, sempre ampliando os horizontes do cinema autoral de Mouret. O diretor, por exemplo, coloca muito bem a serviço das suas mecânicas de encenação o pomposo vocabulário da aristocracia francesa – conseguindo extrair, ao máximo, o humor embaraçoso dos cortejos proferidos pelo marquês, assim como a rigidez gestual nas respostas da madame.
A decupagem das cenas e o rigor formal dos planos dão unidade ao longa. Nem comédia de erros e nem trama cheia de reviravoltas, nunca um filme de uma nota só. Vamos desde uma abordagem mais romanesca com pintadas de comédia - em que se apresenta o romance entre o marquês e a madame, até uma história de vingança “justificada’’ sempre questionada pelas excelentes atuações austeras de Alice Isaaz e Natalia Dontcheva, que interpretam mãe e filha usadas no plano vingativo.
Substâncias
Subtextos mais críticos? Talvez alguns. Mas o longa não é uma comédia política e nem tem pretensão de sê-la. Não há a acidez de filmes de época como A Morte de Luís XIV, de Albert Serra, ou do mais recente A Favorita, de Yorgos Lanthimos. Pelo contrário, a matéria prima de Mouret é o amor, e tudo que se deriva dele: contradições, prazeres e (por que não?) humor.
Através dos embaraços, dos remorsos, dos desejos negados ou concebidos, o cineasta se posiciona no limiar entre a comédia e o melodrama, a vingança justificada e o egocentrismo. É por esse caminho que o longa se torna fiel a obra de Diderot. Conserva-se a dubiedade moral nas perguntas não respondidas, nos pequenos gestos dos personagens e nas mais sutis reações. Nada é definitivo, e nem poderia ser. Mouret sempre foi um cineasta que celebrou a liberdade do amor, e soube muito bem usar isso em favor do seu cinema.
Talvez não tão inspirado quanto Um Novo Dueto ou Romance à Francesa, alguns das suas obras anteriores, Mademoiselle Vingança não deixa de ser mais uma prova que Emmanuel Mouret se firma cada vez mais como um dos cineastas franceses mais interessantes em atividade. Se a sua filmografia não tem um grande apelo comercial, poder assistir ao mais novo filme do diretor na Netflix é uma grata surpresa para os amantes do bom cinema francês.