Albertina Carri já pode ser considerada uma assinatura consolidada no cenário cinematográfico argentino. Com uma paixão pelo poder sensorial das imagens e um olhar crítico para o seu país de origem, a diretora vem produzindo interessantes curtas e longas-metragens desde o começo do século. As Filhas do Fogo, seu mais novo filme – que tem pré-estreia hoje no Cinema São Luiz, é um bom exemplo disso.
O road movie acompanha um grupo de mulheres em uma jornada poliamorosa pela Patagônia, enquanto uma delas pretende realizar um filme. Na narrativa pouco convencional, não há limites estabelecidos pela câmera de Albertina – que filma, sem nenhuma censura, corpos, espaços e as relações sexuais entre suas personagens.
É quase como se a diretora conservasse toda magia da cena final de sexo no clássico Eu, Tu, Ele, Ela, da francesa Chantal Akerman, e renovasse sua abordagem através de uma pluralidade de corpos –que exalta sem nunca objetificar ou fetichizar o ato.
Desde Geminis, seu segundo longa, Carri vem mostrando traços de um cinema bastante autoral. No filme lançado em 2005, por exemplo, podemos perceber influências diretas do excelente O Pântano, da sua conterrânea Lucrecia Martel, no modo com que aborda tensões sexuais nas famílias da classe média argentina. Mas, é em uma das sequências finais do longa que ela mostra sua marca: a paixão pelo gráfico e pela quebra da sugestão (que sempre sugere coisas novas a partir disso).
Apesar de sustentar alguns traços que viriam a se desenvolver na sua autoralidade, Geminis tem pouco a ver, em termos de conteúdo, com a sua nova obra. É no seu interessante curta-metragem de 2002, Barbie También Puede Estar Triste (título em espanhol), que vemos o teor crítico na construção da toxicidade dos personagens masculinos, além da desconstrução imagética das cenas de sexo – tão presentes em As Filhas do Fogo.
No entanto, ao contrário do curta, o filme parece, às vezes, não acreditar na força política de suas imagens e adentra em uma dimensão provocativa – terminando por cair em exercícios já batidos que cineastas como Gaspar Noé usam exaustivamente.
Sem tabu
Surgem a partir disso alguns artifícios menos autorais na composição e montagem das cenas. Nada que prejudique a unidade do filme – que sempre se renova pela forma que a diretora filma os corpos de suas personagens sem nenhuma cláusula moral ou violência.
De toda forma, após completar exatamente uma semana da morte da artista experimental Carolee Schneemann, é uma grata surpresa podermos assistir a um filme que mantém vivo o seu legado.
As Filhas do Fogo herda muito das discussões elucidadas pela norte-americana sobre as representações visuais do sexo, seus limites, maneirismos e convenções no cinema.
“O problema nunca é a representação dos corpos, o problema é como esses corpos se tornam território e paisagem frente à câmera” chega a refletir uma das protagonistas nas cenas iniciais do filme.
Pornô lésbico sensorial, As Filhas do Fogo está sempre discutindo nossas convenções sobre corpos femininos da maneira mais frontal possível. Até por isso seu teor gráfico não seja facilmente absolvido por todos públicos. Isso não quer dizer que o filme não seja uma obra sensível, muito pelo contrário, é encantador. Mas, sobretudo, é uma obra necessária para elucidar temas que a classificação indicativa tende a transformar em tabus.