“E a luz se fez em Contagem”, escrevia, durante o Festival de Brasília, em 2010, o lendário cineasta Carlos Reichenbach. Seu objeto fílmico de adoração tinha o mesmo título do local de onde vinha: Contagem – vencedor naquela edição do prêmio de Melhor Direção para Gabriel e Maurílio Martins, ambos vindo da periferia do município. O curta chamava atenção não só pela sua qualidade, mas por dar luz à uma potente e emergente produção de filmes específicos de uma localidade.
Criada em abril de 2009 no município de Contagem, região metropolitana e periférica de Belo Horizonte, a produtora Filmes de Plástico é a principal responsável por essa movimentação. Encabeçada pela dupla de diretores citados, além dos cineastas André Novais Oliveira e Thiago Macêdo, a produtora vem apontando um interessante caminho para o cinema brasileiro; uma resposta à uma realidade tensionada, através de um olhar singelo, prolífico e, sobretudo, autoral para o cotidiano brasileiro, principalmente periférico.
O sucesso é uma crescente. Oito anos depois de Contagem, Temporada, de André Novais, foi ao Festival de Brasília ganhar o principal prêmio do evento. Fora do país, produções da produtora também figuraram em seleções de Cannes, Rotterdam, entre outros festivais.
O consistente caminho da Filmes de Plástico também já vem deixando seus frutos. No mês passado, Impermeável Pavio Curto, do jovem diretor mineiro Higor Gomes, levou o principal prêmio do Festival de Cinema Universitário de Pernambuco. Higor, conta Gabriel Martins, havia trabalhado com a produtora em Temporada. Mais ainda, seu trabalho parece se inspirar em estruturas fílmicas características da produtora, que agora já é vista, sobretudo, como um norte no cinema brasileiro.
“Eu não me interesso por qualquer tipo de êxito que não venha acompanhado de mais pessoas juntas. Se o filme fizer agora 10 milhões de espectadores, e nos próximos anos não tiver mais nenhum cineasta periférico que conseguiu chegar nesse lugar, para mim é um fracasso. Dessa forma a gente vai tentando trazer também a cada filme que fazemos, novas pessoas, dando essa oportunidade para que elas trabalhem e ganhem dinheiro com o cinema” ressalta Gabriel.
Desde 2010, ele e Maurílio Martins (apesar do sobrenome não são irmãos) juntos, vem chamando atenção no cinema brasileiro. No Coração do Mundo, primeiro longa dos cineastas, é um bom motivo para entender o porquê. Em cartaz no Recife, o filme concilia ficção, violência e singeleza num potente retrato do cotidiano das pessoas na periferia de Contagem. Gabriel concedeu entrevista ao Jornal do Commercio para contar sobre suas influências, a produtora Filmes de Plástico e o universo de Contagem.
Confira a entrevista:
JORNAL DO COMMERCIO – De onde surgiu a ideia do filme e como foi essa construção entre você e o Maurílio
GABRIEL MARTINS – Em 2010, nossa produtora fez dois curtas. Um deles era o Contagem, dirigido por mim e pelo Maurílio, e o outro foi o Dona Sônia, dirigido só por mim. Pouco depois dessa época, a gente fez uma compilação dos dois filmes em um DVD. Um dia, um amigo do Maurílio assistiu eles em sequência e falou que aquilo poderia se tornar outro filme dentro do mesmo universo. A gente não tinha pensado diretamente nisso, mas já existia esse desejo de criar o universo de Contagem, onde a gente vive. Então em 2012 começamos a escrever, adicionar novos personagens e pensar como ligar as histórias.
JC – Então foi um projeto antigo, certo? A construção dos personagens foram mirando já nos atores ou houve mudanças?
GABRIEL – De início quando a gente começou a escrever o roteiro, a gente queria ter mais personagens para ampliar a história. A personagem da Grace Passô e da MC Carol, por exemplo, foram escritas para homens – a gente pensou a da Grace para o Mano Brown. Só que começamos a pensar também o que poderia acontecer se trocássemos os gêneros dos personagens, e como novas potências surgiriam a partir daí. Então recebemos a indicação da Grace, que era daqui de BH. Com a MC Carol, eu já era muito fã, sempre sonhei que ela pudesse atuar em um filme.
JC – A trilha sonora é bem marcante no filme.
GABRIEL – Tem uma trilha sonora original instrumental composta por três amigos nossos. Um deles é o Robert Frank, que também atua no filme, e tem uma banda chamada Pelo. Eu também sou músico, então me juntei aos três nesse processo. A gente sempre pensou numa atmosfera entre o faroeste e o high-tec, uma coisa que tivesse sintetizadores – uma espécie de faroeste moderno. Já pelas músicas originais tentamos trazer outros sentidos para o filme; a que toca na abertura (BH é o Texas), por exemplo, é bem conhecida aqui – o que que casou muito bem com a tensão que a letra traz e essa ironia do faroeste.
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JC – Uma impressão minha é que, além do cinema de gênero, vocês buscam conceber um drama bem autoral; gradual, investigando o cotidiano.
GABRIEL – A gente começou a desenvolver muito a partir da identidade dos personagens. Antes de ser uma trama sobre o assalto ou morte, o filme é muito sobre os personagens. Desenvolvemos todos eles em uma estrutura dramática que para conseguirmos entendê-los, era necessário passar um bom tempo ao lado deles. Compreendê-los através das conversas, da profissão, das rotinas, em diferentes núcleos, sobretudo. Então, em vez de pensar só a trama e como a gente ia colocar o espectador numa relação de causa e consequência, buscamos muito mais essa subjetividade operando nos indivíduos que constroem aquele todo.
JC – Eu percebo também que nesse processo vocês têm um certa paixão pelos personagens e suas particularidades. De não julgar as ações, de explorá-los de outras formas.
GABRIEL – O cinema tradicionalmente coloca para o espectador certos clichês de imagens esperadas. A gente vai assistindo muitos filmes e passa despercebido por uma certa formação do cinema americano que grava alguns conceitos nas imagens; e no cinema brasileiro também é assim, principalmente no de periferia. A partir disso a gente tentou desconstruir esse imaginário e tensionar um pouco as expectativas das pessoas. Fomos construindo uma espécie de selados no espectador, para que o personagem nunca pudesse ser visto como uma coisa só. Porque a vida é assim, não é um arquétipo apenas. Por mais que o filme se baseie numa estrutura dramática bem organizada, os personagens muitas vezes escapam.
JC – Como você localiza o cinema de gênero em um certo olhar já desgastado para periferia?
GABRIEL – No nosso caso, o momento de ação do filme parte de uma vontade paralela de trazer outros gêneros para dentro dele, numa espécie de troca de energia. Se a gente tivesse colocando tudo em um gênero só, uma imagem só, por exemplo, estaríamos indo contra a potência dos outros personagens, diminuindo eles. Às vezes as pessoas assistem o trailer do longa e pensam que é um filme sobre a violência na periferia. Mas não é sobre isso, a gente trata das rotinas das pessoas que tem o contato com essa violência, o que não é cotidianamente, até para desconstruir essa ideia que todo dia tem tiro na periferia.
JC – Como esse filme cai no circuito cinematográfico do Brasil de hoje?
GABRIEL – Antes de tudo, sem analisar o que está dentro do filme, mesmo que esteja relacionado, é um filme feito por uma produtora nascida na periferia, e lançado nos cinemas de todo país. Isso por si só, é uma vitória histórica não só para gente, mas para todo Brasil. Para além disso, tem que pensar o que o filme é. Ele exige um olhar mais cuidadoso, desafia pensar a periferia de um jeito diferente, olhar o mundo do trabalho e essa falta de perspectiva. Então eu acho que No Coração do Mundo, para além do que ele é como objeto fílmico, é uma representação do lugar de onde ele vem. Um filme de periferia, de baixo orçamento que conseguiu ser lançado, que está na boca das pessoas e em vários canais de imprensa. Isso tudo já é uma grande resposta de resistência. E isso é importante demais para nós, porque a gente recebeu muitos retornos de cineastas negros, de periferia, que estão vendo o filme e se espelhando nele.
JC – Em termos de influências, para o filme e em geral, quais foram as suas?
GABRIEL – Várias. Alguma delas estão homenageadas diretamente, no caso do Carlos Reichenbach como nome da escola. Além dele, se inspiramos muio em Charles Burnnet, Kira Muratova. Inclusive, tem um plano que por mais que não seja bem evidente, foi bem inspirado no Síndrome Astênica (1990) dela. Muitos outros também, Brian De Palma, Carlos Prado Correia, Geraldo Veloso, Spike Lee, James Gray – tem bastante coisa dele no filme; muito dessa característica de como dialogar a câmera com o espaço, como ela vai construir todo um significado próprio, e mudar como a cena funciona.
JC – Como foi essa relação com o André Novais Oliveira no filme?
GABRIEL – Foi um filme filmado antes do Temporada. Uma anedota boa disso é que o primeiro ensaio da Grace para nosso filme foi com o Russão. E o André como diretor assistente estava filmando todos os ensaios. Então ele viu a primeira vez a Grace e o Russão em cena, que depois se tornaram personagens do Temporada, gravado um ano depois. Isso é interessante também porque o André gravou todos os ensaios. Ele ficou ali meio de fora, olhando e dando a opinião dele sobre o que a gente estava fazendo. No final, foi um trabalho conjunto.
JC – Em termos de projetos futuros, No Coração do Mundo aponta uma marca nos seus filmes que virão?
GABRIEL – Eu acho que foi uma marca, uma identidade. No caso do No Coração do Mundo, um amigo nosso fez uma piada dizendo que o filme era o 'Vingadores' da Filmes de Plástico, no sentido de trazer todos os personagens ali do universo de Contagem. E na verdade, isso é engraçado porque o filme também é um fechamento de ciclo. Ele dá conta de muitas coisas que a gente fez nesses dez anos de produtora. Mas essa forma de pensar e olhar o cotidiano e, principalmente, a direção de atores, é uma marca nossa, e é por esse caminho a gente deve seguir.