Tradutora de Fredric Jameson e uma das principais pesquisadoras dos estudos culturais no Brasil, a professora Maria Elisa Cevasco veio recentemente ao Recife dar um curso sobre O Sentido da Cultura em Fredric Jameson para funcionários da Secretaria Estadual de Cultura. Nesta entrevista, ela fala da crítica cultural, que defende como essencial para interpretar a realidade.
JORNAL DO COMMERCIO – Para você, que conceito de cultura dialoga com a sociedade atual?
MARIA ELISA CEVASCO – O que eu acho interessante de trabalhar com a cultura no mundo contemporâneo é que ela não é um conceito estático. Como todos os conceitos, o de cultura depende do momento histórico e de onde você está. No século 19, por exemplo, o conceito de cultura com que a gente trabalha hoje era impensável. Cultura eram os grandes valores espirituais da humanidade, as grandes obras. Justamente na tradição anglo-saxônica dos anos 1950 e 1960, Raymond Williams vem trazer uma mudança nesse conceito de cultura, e a mostra como todo um modo de vida. Uma coisa que eu acho muito interessante no conceito de cultura na tradição materialista é que você apreende sobre a sociedade através da cultura. Ela tem um poder cognitivo. Não é um conhecimento empírico, é um conhecimento que só as manifestações culturais podem te dar, porque elas materializam esses significados e valores da sociedade que são contraditórios. Fredric Jameson, para chegar no hoje, é o melhor teórico do momento presente. Foi ele, no âmbito mundial, que explicou para todo mundo o que era pós-modernismo. Ele conseguiu isso justamente porque ele junta cultura e sociedade ou, num ponto mais específico, ele junta produção cultural e produção econômica. Quando você olha para os dois juntos, fica tudo mais claro.
JC – Qual é o papel do crítico cultural?
CEVASCO – Na filiação da crítica cultural materialista é entender a sociedade para influir nos seus rumos. O professor Antonio Candido tem uma frase em que ele fala do romance, mas que eu gosto muito de aplicar para a crítica. Ele diz que o romance é um instrumento de descoberta e de interpretação da realidade sócio-histórica. Eu acho que a crítica cultural é a mesma coisa. É um instrumento, pois tem valor prático. É um instrumento de descoberta, porque a realidade está velada pela ideologia e pelos nossos hábitos de olhar tudo como se fosse natural. Tendo descoberto a realidade sócio-histórica, o crítico precisa interpretá-la, dizer o que ele acha dessa realidade, e, principalmente, dizer de que lado a obra e a crítica feita estão.
JC – O que no pensamento de Williams e Jameson dialoga com o mundo atual?
CEVASCO – O projeto de Williams, que mais de perto me fala ao coração, não é que ele esteja morto, mas foi derrotado. O projeto de Williams viveu no bojo de um projeto de transformação social do anos 1960. Essa transformação não aconteceu. Não é que a teoria dele estava errada, mas, dizendo de forma bem exagerada, o mundo para o qual aquela teoria foi criada desapareceu. E Jameson é o grande crítico do processo de globalização. Não tem ninguém, nas diferentes áreas, com quem eu tenha aprendido tanto sobre o funcionamento do mundo contemporâneo. Enfim, eu acho efetivamente que a tradição materialista de crítica cultural está muito viva, muito atuante.
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CULTURA E MATERIALISMO Raymond Williams é, ainda hoje, um dos nome fundamentais para se entender os debates dos últimos 50 anos em torno do conceito de cultura. Com uma forte atuação acadêmica e política, ele é considerado o principal pensador do que viria a se chamar de estudos culturais, corrente teórica que passou a se espalhar por todo mundo. Cultura e materialismo (Editora Unesp, 386 páginas, R$ 55), com tradução e prefácio de André Glaser, é uma boa introdução ao trabalho do autor britânico. Lançado originalmente em 1980, só agora o título chega no Brasil. Nos 14 artigos de Cultura e materialismo, Williams mostra não só parte do seu pensamento, mas também sua versatilidade como acadêmico. O livro conta com resenhas críticas, ensaios sobre a relação entre a natureza e a sociedade humana e análises culturais e políticas. Trata-se de uma excelente amostra do trabalho realizado em obras como Cultura e sociedade (1969) e Marxismo e literatura (1979). No artigo Base e superestrutura na teoria da cultura marxista, o galês explica a premissa que o levou a trabalhar com um conceito de cultura mais amplo, que englobasse também as práticas e valores. Negando, a partir do conceito de hegemonia de Gramsci, uma simples determinação da cultura pelas condições de mercado, ele defende que ela é um campo de práticas complexas, que não se resumem à reprodução de uma ideologia de classe. Essa reviravolta permitiu que o conceito voltasse a ser um dos temas centrais das discussões marxistas, e terminou influenciando toda uma geração.