Nota do tradutor (Caetano Galindo)
Toma então este Ulysses. É teu. Ficou dez anos comigo e agora eu me despeço dele.
Mas o fato é que eu preciso ainda aproveitar este espaço para duas coisas.
Uma é explicar certos pontos, como por exemplo a decisão de publicar o Ulysses sem um aparato de notas. Primeiro de tudo, o que justifica essa escolha é a nossa crença na ideia de que, por mais que, num primeiro momento, Ulysses possa, e deva, se beneficiar de outras leituras, de muita crítica e muita enciclopédia, o livro pode ganhar mais se for apresentado sozinho. Pode ser melhor aproveitar a leitura pelo que ela tenha a oferecer, deixando talvez as obsessões anotadoras para as leituras seguintes, que normalmente virão.
Assim (e contando com a sólida introdução do professor Kiberd para contextualizações mais gerais), tentamos apresentar o Ulysses como o que ele deve sempre ser em primeiro lugar: um romance, talvez o maior romance de todos, e não um quebra-cabeça exemplar.
Isso não quer dizer que esse tipo de paratexto, repito, seja de todo desnecessário, mas apenas que ele pode estar em outro lugar. Hoje, por exemplo, muito do que se pode desejar de esclarecimento está disponível online, inclusive em português, para qualquer leitor com o tipo de curiosidade que o leve a essas dúvidas. Anotar todos os nomes de personalidades históricas e todas as canções citadas, em 2012, pode até ser redundante. Mais ainda, essa mesma editora vai publicar em breve um pequeno guia que, novamente evitando o anotacionismo, espera funcionar como um acompanhante para aquelas segundas e terceiras leituras, de uma maneira que apenas um elenco de notas pontuais não poderia fazer.
Outro procedimento que pode precisar de uma explicação se refere — quase ironicamente, num livro com questões de tradução tão complexas — a uma coisa irrisoriamente simples. Joyce detestava hífens. (A bem da verdade ele não gostava muito de vírgulas também, e isso transparece na tradução.)
Em inglês, essa recusa do uso do hífen acaba gerando a criação de várias palavras aparentemente novas mas que são na verdade apenas uma representação gráfica diferente de um composto conhecido, ou mesmo de uma junção de substantivo e adjetivo totalmente normal, coisa que o inglês, de resto, sempre teve facilidade de fazer. Joyce apenas usava as regras de formação de palavras do inglês de uma forma, digamos, mais acelerada.
A tradução dessas palavras compostas em português pode ter muitas soluções, e aqui nós optamos por mais de uma, conforme o caso, o momento, o grau de estranhamento.
Por vezes simplesmente as palavras foram desdobradas ou traduzidas por um termo único, exatamente como seria no caso de se traduzir por ruiva a palavra redhead em um texto qualquer. Em outros casos, criamos algumas palavras pelo mesmo processo de deleção do espaço gráfico, com a mesma regra que nos permite formar, por exemplo, benvindo, em português. Isso gerou também alguns vocábulos mais chamativos, e como não era essa a intenção (apesar de não ser também motivo proibitivo), acabamos optando por um uso mais comedido dessa solução, como por exemplo no trecho do terceiro episódio que descreve Kevin Egan como alguém senhamor, senterra, senhesposa, ou na descrição do Cidadão, no episódio 12, como alguém que tem sardasmuitas, barbirsuta, boquimensa, ventasgrandes, longocrânio, vozprofunda, pernasnuas, mãosselvagem, pèpiloso, rostorrubro, braçoforte.
Neste último trecho, aliás, surge outro motivo de explicação, que é o uso do dito acento grave, que antes da reforma de 1971 era usado para registrar o timbre aberto de uma vogal quando da formação de um derivado, como em cafèzinho. É exatamente nessa função que ele aparece, em alguns poucos casos, nesta tradução.
Em casos ainda menos numerosos, e via de regra já nos momentos mais experimentais do livro, é que nos demos o direito de, por exemplo, descrever as órbitas de um cadáver como contornazuladas. Já um campo em que pudemos (e isso não é plural majestático, como os agradecimentos mais abaixo hão de deixar bem claro) dar rédea mais frouxa à lei joyceana da aglutinação foi o dos numerais e dias da semana. Aqui, como nos “compostos” ingleses, o que aparece na página é meramente a versão mais precisa da realidade fonética de certas sequências de palavras: vintetrês, setentecinco, e, ainda mais singelas, terçafeira, quintafeira.
Essa variabilidade de critérios também se aplica à decisão de traduzir os apelidos de certos personagens. Chamar alguém de Nosey Flynn parece perder algo que o nome Fungão recupera para o leitor brasileiro, ainda mais se há toda uma cena em que Bloom observa o nariz caudaloso de Flynn. O mesmo vale para o Deixaqueuchuto e, mais chamativamente, para o Rojão Boylan, o que, neste caso, ainda nos permitiu recuperar algum jogo entre o apelido e outras ocorrências da palavra no texto.
Uma das regras mais curiosas que afinal você pode acabar percebendo nesta tradução é uma singular flexibilidade no uso das regras. Afinal, o Ulysses, ele mesmo tão variado e tão múltiplo, não podia ser traduzido de outra maneira. Se em todo o livro, por exemplo, deixamos em inglês os nomes de logradouros (Dame Street) e no monólogo final optamos pela forma aportuguesada (rua Dame), indo aparentemente contra as regras da regularidade e do bom senso, foi apenas porque este livro, nestes casos, tem regras que anulam aquelas.
Uma última coisa. Por que Ulysses, com y? Bom, depois de explicar tanta coisa aqui talvez eu possa me arriscar a usar as palavras que foram um dia de Guimarães Rosa e, recentemente, de Quentin Tarantino, quando lhe perguntaram o sentido da estranha ortografia do título de Inglourious Basterds: tem coisas que é melhor deixar para o leitor tentar resolver…
A segunda coisa que eu quero fazer aqui é deixar registrado que muita gente fez o necessário para que este Ulysses existisse e fosse o melhor possível, apesar das minhas limitações. E está mais do que na hora de dar estes créditos.
A começar pelos meus predecessores, o corajoso desbravador Antonio Houaiss e a grande professora Bernardina Pinheiro da Silveira. Depois aos meus colegas no curso de letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que bancaram o meu afastamento de quatro anos para escrever o doutorado que gerou esta tradução e aceitaram a ideia de um professor de linguística ir gradualmente migrando para a literatura. Aos professores Carlos Alberto Faraco, orientador perene, e José Luiz Fiorin, que aceitou orientar uma tese que todo mundo achava infazível. Aos professores Francis Henrik Aubert, Beth Brait e José Roberto O’Shea, membros da banca que aprovou a tese em 2006, na usp. À Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde fiz um pós-doutorado sobre tradução de Joyce. Aos inúmeros alunos e orientandos que me ouviram falar de Joyce nesses anos e me afiaram bastante.
Acima de tudo a Sandra M. Stroparo, minha mulher, que me aguentou e me manteve de pé durante a década do périplo, e me levou a Dublin, Zurique e Paris, à minha filha, que tem hoje quase exatamente a idade de Milly Bloom (como tenho eu a de Poldy), e que é a minha leitora ideal no futuro, ao meu irmão, Rogerio W. Galindo, um dos primeiros leitores, a Luís Gonçales Bueno de Camargo, meu irmão-de-armas, incitador-geral-da-república e grande exemplo. A vários outros leitores de primeira hora, entre eles Lielson Zeni e o über-vizinho Cristovão Tezza. A Sérgio Medeiros e Dirce Waltrick do Amarante, Augusto de Campos, Fritz Senn e Finn Fordham. A Edson Cruz, Marcelo Tápia, Aguinaldo Médici Severino e Ivan Justen Santana, por todos os Bloomsdays e as conversas sobre Joyce. A Alice Borges Leal, da Universidade de Viena, a Guilherme Gontijo Flores, da UFPR, pela tradução do aparato e pelo entusiasmo, a Sara Grunhagen, pelo auxílio com as transliterações do hebraico. A Plínio Martins Filho, pela atenção e consideração. A toda a equipe da Penguin-Companhia, por permitir que finalmente este livro saísse da gaveta, especialmente aos revisores Jane Pessoa e Huendel Viana e ao André Conti, pai-comercial e editorial desta história toda e irmão de espírito. E finalmente ao mestre-padroeiro Paulo Henriques Britto, orientador daquele pós-doc e melhor companhia possível para a revisão total do texto, que foi feita entre 2010 e 2011.
Fica o Britto como símbolo do quanto eu pude aprender e eventualmente despiorar ao longo deste projeto, e do quanto ainda será sempre minha a responsabilidade por qualquer falha que reste.
Muito obrigado e boa leitura.
São Paulo (Dublin, Zurique, Paris) — Rio de Janeiro — Curitiba 2002-2012
Leia mais sobre Ulisses na edição do Caderno C, do Jornal do Commercio, deste domingo (6/5)