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Os ingleses comemoraram bastante o fim dos direitos autorais das obras de James Joyce. Mais do que a possibilidade de surgirem, sem custos adicionais, novas edições dos escritos do autor, o evento significou que editores, biógrafos e acadêmicos ficariam livres de Stephen James Joyce, neto do autor e responsável por cuidar de seu legado literário. Suas polêmicas decisões de bloquear citações ao autor irlandês, proibir biografias e até impedir leituras públicas de Ulisses (como é grafado nas demais edições brasileiras) deram fama a ele de um dos piores herdeiros literários da história.
A briga entre os literatos e Stephen não é uma mera implicância, fruto da adoção de critérios restritos para permitir novas edições das principais obras do seu autor. Os primeiros problemas começaram na década de 1970, quando Richard Ellmann publicou parte da correspondência de Joyce, incluindo cartas pornográficas dele para sua esposa, Nora, e textos sugestivos escritor para uma possível amante.
Em resposta a isso, em 1988, Stephen anunciou durante uma conferência joyciana em Veneza que havia destruido cerca de mil cartas escritas pelo autor e sua filha, Lucia Joyce, inclusive parte da correspondência da garota com sua paixão juvenil, Samuel Beckett. Em 1991, os direitos da obra de Joyce expiraram, mas, quatro anos depois, por uma mudança na lei, voltaram a vigorar. A partir desse momento, passou a agir, nos termos do estudioso Gordon Bowker, como um “ditador do copyright”: até mesmo as bibliotecas que continham cartas do romancista irlandês só podiam mostrá-las com autorização por escrito.
Em 2005, Stephen proibiu uma acadêmica americana, Carol Loeb Shloss, de citar na sua biografia Lucia: to dance in the wake qualquer palavra do seu avô. A decisão levou a um longo processo legal, concluído em 2009, que obrigou o herdeiro a pagar 240 mil dólares de custos jurídicos para a biógrafa. Foi o começo da derrota do intransigente herdeiro, que, a partir do começo deste ano, perdeu o resto do poder que tinha.
As diversas controvérsias que surgem da atuação dos herdeiros literários não são por acaso: é uma atividade delicada, que demanda bastante cuidado para não afetar o que o autor entendia como sua obra e nem limitar cruelmente estudos de seus escritos e sua vida. No Brasil também existem casos de relações problemáticas entre estudiosos e biógrafos e os donos dos direitos de autores.
Vilma Guimarães Rosa, filha de João Guimarães Rosa, é uma das responsáveis por cuidar da obra do autor de Grande sertão: veredas. Além de dificultar acesso aos diários e cartas do autor, a herdeira, autora da biografia do pai Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai, tem negado o direito de publicação de livros sobre a vida do mineiro. Chegou a entrar na justiça, em 2008, para impedir que Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa, de Alaor Barbosa, circulasse. “Ninguém pode escrever uma biografia sem o consentimento das filhas, herdeiras do nome e da imagem de Guimarães Rosa”, declarou na ocasião. “Quem quiser saber de meu pai que leia o meu livro e está muito bom”, já havia determinado, dois anos antes, em entrevista à revista Piauí.
Ainda por aqui, o poeta alagoano Lêdo Ivo, em 2011, foi a público reclamar dos herdeiros do poeta pernambucano Manuel Bandeira, que cobraram fortunas para usar imagens do escritor em um livro seu. No caso do direito de imagem, no entanto, a lei é ainda mais restrita: eles nunca expiram, ou seja, a utilização de fotos e vídeos sempre dependerá da vontade dos descendentes – cada vez mais distantes – desses autores. Para o público, que não pôde, por muitos anos, conhecer cartas e manuscritos de Joyce, e não pode conhecer os diários completos de Guimarães Rosa, resta esperar que a obra dos grandes nomes da literatura seja bem gerida, com um mínimo de acessibilidade para cada vez mais pessoas.
Leia a matéria completa no Caderno C, do Jornal do Commercio, neste domingo (6/5)