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Contra as noções prescritivas e definitivas da mulher, os versos. A poetisa gaúcha Angélica Freitas, um dos principais nomes do cenário contemporâneo desde o lançamento do seu primeiro livro, Rilke-shake, faz agora com o esperado Um útero é do tamanho de um punho (Cosac Naify, 96 páginas, R$ 28) um exercício de poesia e de provocação ao mesmo tempo. A obra, um dos grandes lançamentos de versos do ano até agora, se usa da instabilidade produtiva do discurso poético para falar do feminino despido de preconceitos e construções. Na entrevista abaixo, ela comenta como a inquietação em relação ao tema é antiga e fala sobre o uso da internet na sua obra.
JC – Mais do que o Rilke-shake, cujos poemas se uniam talvez pela poética, Um útero é do tamanho de um punho traz versos que têm em comum também uma temática. Como o tema da mulher se colocou como preponderante nessa obra? Já era um tema presente em outros poemas seus (ou em outros aspectos da sua vida)?
ANGÉLICA FREITAS – Sim, o Um útero... tem esse tema que atravessa quase todos os poemas, a mulher. É um assunto que sempre me inquietou, porque desde pequena sentia que alguns comportamentos associados às mulheres eram aprendidos. E que muito provavelmente tinham sido inventados por alguém, em algum momento. Não entendia, por exemplo, por que só as mulheres usavam saias. E comecei a me recusar a usar saias e vestidos. Eu tinha uns 12 anos. Mas também me dei conta de que não existia muita alternativa. Devo ter esgotado as possibilidades do vestuário unissex.
JC – O que é fazer poesia como uma mulher - se é que há algo de diferente nisso?
ANGÉLICA – Quando você escreve desse lugar, conscientemente, vai sair algo diferente, sim. Mesmo que você seja homem.
JC – Política e poesia estão muito conectadas entre si nesse livro. É algo próprio do seu fazer poético? Consegue separar os universos, sem temer que poesia possa ser confundida com discurso?
ANGÉLICA – Ultimamente, tenho pensado que a literatura deve provocar. Escrevi o livro nesse espírito.
JC – Em Um útero..., assim em Rilke-shake, apesar das referências eruditas e pop, a sua opção é por uma prosa poética clara. Sei que não é uma pergunta simples, mas você faz poesia mesmo contra a solenidade e os grandes temas?
ANGÉLICA – Eu acabo escrevendo também sobre coisas que me incomodam. A solenidade, a demonstração de erudição, muitas vezes servem para mostrar quem é que manda no galinheiro. Bom, nunca vou aceitar que certos bípedes venham me dizer o que é a boa poesia, o que se pode ou não fazer.
Veja alguns poemas de Um útero é do tamanho de um punho:
A mulher é uma construção
a mulher é uma construção
deve ser
a mulher basicamente é pra ser
um conjunto habitacional
tudo igual
tudo rebocado
só muda a cor
particularmente sou uma mulher
de tijolos à vista
nas reuniões sociais tendo a ser
a mais mal vestida
digo que sou jornalista
(a mulher é uma construção
com buracos demais
vaza
a revista nova é o ministério
dos assuntos cloacais
perdão
não se fala em merda na revista nova)
você é mulher
e se de repente acorda binária e azul
e passa o dia ligando e desligando a luz?
(você gosta de ser brasileira?
de se chamar virginia woolf?)
a mulher é uma construção
maquiagem é camuflagem
toda mulher tem um amigo gay
como é bom ter amigos
todos os amigos tem um amigo gay
que tem uma mulher
que o chama de fred astaire
neste ponto, já é tarde
as psicólogas do café freud
se olham e sorriem
nada vai mudar -
nada nunca vai mudar -
a mulher é uma construção
Eu durmo comigo
“eu durmo comigo/ deitada de bruços eu durmo comigo/ virada pra direita eu durmo comigo/ eu durmo comigo abraçada comigo/ não há noite tão longa em que não durma comigo/ como um trovador agarrado ao alaúde eu durmo comigo/ eu durmo comigo debaixo da noite estrelada/ eu durmo comigo enquanto os outros fazem aniversário/ eu durmo comigo às vezes de óculos/ e mesmo no escuro sei que estou dormindo comigo/ e quem quiser dormir comigo vai ter que dormir ao lado.”
Leia a matéria completa no Jornal do Commercio desta terça (6/11).