RESENHA

Poesia para problematizar o feminino

Em Um útero é do tamanho de um punho, Angélica Freitas desconstrói o conceito de mulher para complexificá-lo

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 06/11/2012 às 6:59
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“Era uma vez uma mulher / e ela queria falar de gênero”. O início de um dos versos da poetisa gaúcha Angélica Freitas funciona como uma fábula irônica em que ela é a própria protagonista: ali está ela, uma mulher, que quer sim falar sobre gênero. Mas como conciliar a exposição política das fraturas da construção social – e cruel – da mulher em forma poética? É esse o desafio que a autora se impõe em Um útero é do tamanho de um punho (Cosac Naify, 96 páginas, R$ 28), seu segundo livro de versos.

A obra, a segunda da autora, chega depois de cinco anos do lançamento de Rilke-shake, que a alçou ao posto de uma das principais apostas da poesia contemporânea brasileira. Antes disso, ela já era uma poetisa atuante na internet, reunindo trabalhos no seu blog Tome uma xícara de chá (www.loop.blogspot.com.br) e criando, junto com o poeta Ricardo Domeneck e a escritora Marília Garcia, a revista Modo de Usar & Co.

Em Um útero é do tamanho de um punho há alguns recursos já presentes em Rilke-shake, como as referências tanto ao universo erudito como ao pop. Só que aqui poética e discurso estão intrinsecamente ligados, como se Angélica descobrisse que a melhor forma de falar sobre um tema necessário como o da construção dos gêneros é a poesia, justamente porque é avessa aos clichês e às simplicidades semânticas.

Assim, a autora mostra com fina ironia os clichês do machismo (em Mulher de vermelho, faz alguém pensar que “alguma coisa ela quer / pra ter posto esse vestido”). Angélica quer falar de uma mulher que não é aquela “limpa” que a sociedade exige, mas sim das histórias femininas que não cabem em conceitos – da mulher como ser em mutação, como figura complexa. É por isso que a própria mulher às vezes é também um conceito expansivo. O útero que é do tamanho de um punho é o órgão que hospedou um dia todos os médicos, advogados, capelas, senhoras católicas. Mas esse útero também é o de Diadorim, mulher que é homem quando preciso, ou ainda o de personagens transexuais. A mulher, para Angélica, não é uma fronteira: quando desconstruída, pode realmente começar a ser compreendida.

Em um dos versos mais bonitos do livro, a autora fala da mulher como uma construção. A inserção da subjetividade, ainda que por meio da brincadeira consigo mesmo, faz do tema ainda mais poético e impactante: se o gênero é uma construção, ela mesma é “uma mulher / de tijolos à vista”.

A versatilidade de Angélica se mostra em uma das partes do livro, 3 poemas com auxílio do Google. Ainda sobre o mesmo tema, a mulher, ela usa frases comuns na internet para criar seus versos. Não se deixa de se expor, como em Eu durmo comigo (“e quem quiser dormir comigo vai ter que dormir do lado”), e toca também no tema do fazer poético hoje. “Queria escrever um poema / bem contemporâneo / sem ter que trocar fluidos / com o contemporâneo”, explica em sua própria contradição. A impossibilidade disso, no entanto, está clara: “todas as leituras de poesia / são equivocadas”, define.

Entre a ironia, que nunca é aqui um niilismo paralisante, e o lirismo, tampouco permeado de clichês, Angélica cria em Um útero é do tamanho de um punho uma poética que é crítica, sarcástica, comprometida, subjetiva, complexa e comunicativa, tudo isso ao mesmo tempo. É como se o livro indicasse que a poesia pode ajudar a reconstituir complexidade e sensibilidade do mundo em si; como se só o fazer poético pudesse criar redundâncias e obviedades reveladoras como esta: “as mulheres são / diferentes das mulheres”.

Leia mais no Jornal do Commercio desta terça (6/11).

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